Soneto do alento
É tanto, Amor, que aos olhos vivos não me atento
De ser um tonto, tinto, retinto em teu encanto
De mover-me alto pela vida com espanto
Sendo ele inda menor que meu contentamento
Pois esse Amor, que de pecados, é tão santo
Eu canto sobranceiro e tolo pelo vento
E grato à vida pelo mais fogoso alento
Vislumbro no teu corpo o mais formoso manto
E assim, quando mais tarde vir a aurora
Maliciosa, disfarçada, em meu poente
E dela vir brotar a velha chama
Serei tomado pelo fogo, esse que aflora
E leva o mal, o pranto, o todo ausente
Do infinito peito de quem ama
(Saborosa brincadeira sobre “Soneto da Fidelidade”, de Vinícius de Moraes.)
Soneto em sete faces
Daqui, de minha terra natimorta,
Eu vejo a porta que remonta ao novo mundo
Explode a aorta do poeta trapo vagabundo
Que, gauche, à vida rara se transporta
De onde será tanto desejo oriundo?
Um regozijo para alguém de sina torta?
Servir-te para o sempre é a meta que me importa
Ante a nefasta rima de Raimundo
Tantas pernas andando pelo bonde
Tantos nomes, meu amor, quantos bigodes
Uma vasta lua, uns conhaques e o diabo
Eu sou teu homem, ó Rainha, teu visconde
Eu me afeto, pois sei que só tu podes
Ser a mulher amada onde me acabo
Silhueta
Aprecio minha dona à contraluz
A manhã atravessando seu vestido
Feito de tempos e histórias, já puído
O contorno mal escrito me seduz
A beleza é clamor indefinido
Meu olhar é bala ardente de arcabuz
Que fenece e renasce igual Tamuz
Ao humor do sol veraz e embevecido
O homem entrava, surta, paralisa
Para ver-te, cativante silhueta
Adorar-te augusta Mona Lisa
O tempo congelado na ampulheta
O passo claudicante, já não pisa
No lastro chão corpóreo do planeta
Armadilhado
Estava o homem velho, em vida ilhado
Perdido, conformado em larga trilha
Pés fincados, sangrando na armadilha
Pelo Homem lá de cima observado
Tanta história, tanto conto lá na ilha
De onde não saía, sozinho e isolado
Via o horizonte, sofrido, acabrunhado
Submisso à quimera maltrapilha
Mas o Deus, que a tudo vela, tudo olha
Trasvestiu-se em cupido empertigado
Dedicou-lhe o amor sincero que abrolha
E o homem entregou-se bobo e abismado
Já no outono, onde a vida se desfolha
Dessa vez, para sempre armadilhado
Metade
Sofre minh’alma em franco desalinho
Habita a solidão do seu vazio
Não enfrenta com arrojo o mar bravio
Sente a falta do seu colo, alvo ninho
Aquela que foi feita ao teu feitio
Que recorrente esteve em teu caminho
Dona régia e inconteste do carinho
Que te faz à revelia entrar no cio
Tua ausência me arrancou vital pedaço
Justamente o melhor que mora em mim
O que me traz amor e liberdade
Suplico, minha Amada, o teu regaço
Eu quero minha casa carmesim
Pois não sei mais viver pela metade
Valeriano II
Cometi outro soneto, meu amor
Mais um torto, mais um ato
Mattoso chamou de desacato
Baudelaire virou a cara com horror
Gregório riu e foi correndo lá pro mato
Machado não quis ser fiador
Florbela reagiu com despudor
E Petrarca me acusou de estelionato
Se pudesse me aninhava no teu colo
Envergonhado pelos versos infantis
Assustado com a força desse sonho
De sentir-te nos pés como meu solo
De querer-te com teus modos tão gentis
E de fazer-te outro soneto, assim, bisonho
São Poeta
Caminha em passo torto o São Poeta
O mais santo habitante do planeta
Mesmo o diabo no girar da carrapeta
Não lhe concede o prazer da linha reta
Segue tonto, circulando em pirueta
Duvidando da grandeza do Esteta
Cuja clara brincadeira predileta
É fazer-Se de emissário, estafeta
Ao poeta e sua casca de erudita
Ao gauche, e seu roteiro de anedota
O grande prêmio por desvio de conduta
O raro, para a classe mais restrita
A chance, por direito, a mais remota
Da certeza, por dever, absoluta
Soneto do Ano Novo Valeriano
O tempo, artífice cotidiano,
Tece sua teia em tênues linhas
Retas, curvas, todas vizinhas
Não sabemos, mas há um plano
Nossas atitudes, das mais comezinhas
Às heroicas, no auferir de cada ano,
Sob ralo olhar cartesiano,
São a poeira levantada em nossas rinhas
Desce vagarosa a lâmina implacável
A visar a jugular do criador
A sorrir com o frescor da eternidade
O homem, de conduta admirável,
Já não sente do fio menor pavor
Pois baniu de seu peito a veleidade
Amálgama
Amalgama minha alma, amada
E nas mansas manhãs de outono
Consagra a cama com teu sono
Depois do amor da madrugada
Perdoa teu corpo do abandono
Faz a tua casa em minha pele
Que um mundo novo se revele
A mim, servil escravo e colono
Mansa manhã agora perdoada
Pele atroz escravizada
Servidão retida no carbono
Que o corpo venha como dono Trazendo à margem, consagrada Nossa alma, una, amalgamada
À Deriva
Quero ver-te, assim, dispersa
Perdida em seus longos olhares,
Singrando alheia nos esgares
Nau, flagrada em mar, perversa.
Ó flor fornida nos pomares,
Diz pra mim, nesta conversa,
És trama de tapete persa
Ou estrela esculpida nos quasares?
Guia de dementes navegantes,
Que vagam pelas vagas milenares,
Sem auxílio de asas ou talares,
Estúpidos tropeiros dos teus mares.
Sorris a todos sem pesares,
Pois és uma em muitas delirantes.
Meu corpo, minha Nau
De onde vem esse fervor, esse fascínio
Essa flama que difama a lucidez
E que me arranca e desanca o raciocínio
Um pobre homem e a gritante insensatez?
Sou teu cativo, teu marido, teu escrínio
E me entrego assedentado à cupidez
Sobre teu cetro tu exibes teu domínio
Ao que nunca outrora amara outra nudez
Aqui, sozinho, a distância é uma tormenta
A fustigar as águas verdes do oceano
A inundar meu coração sobressaltado
A saudade é minha guia, a dor é que orienta
A navegar arrojado o mar insano
E chegar vivo ao continente e ao teu lado
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