Terra cega
A veracidade em nossa Terra
Triste, que nos separa
É o limite, linha tênue e rara
De um tempo que se encerra
Mais perto, estúpida seara
O destino belo de quem erra
A Paz construída pela guerra
Ferida aberta que não sara
Opiniões contrárias, divergentes
Não são lampejos belicosos
Nem desamor que se irradia
Podem ser precisas, contundentes
Como teus olhos preciosos
Que convivem em lépida harmonia
Separação em três sonetos com incompatibilidade de gênios
I
Já não deito, amor, sobre as migalhas,
Restos, restolhos, que reservas para mim.
Saí vivo/morto da fornalha,
Mas sinto o fogo, sinto o pranto, sinto o fim
Serão nossas carnes a mortalha
De sentimentos exaltados em motim?
Guerreiras prontas pra batalha
Ao toque belicoso do clarim?
Mas antes do teu corte de navalha
Antes de jogar minha toalha
Antes mesmo do butim
Enquanto juntas tua tralha
Não quero ouvir tua alma falha
Perdoa, vou ficar no botequim!
II
Não esquece de levar tua sandália,
Aquela fabricada em Pequim
Leva as fotos da tua parentalha
Teus cds, teus dois livros e teu tim
Não deixa meia, calcinha, uma malha
Nem os teus batons em tom carmim
Cada coisa, tudo isso me assoalha
Me atira ao nível do capim
Mas eu ou forte, sou tenaz, eu sou muralha
O que não sou – e sabes bem – não sou canalha
Sou somente, tão somente um Arlequim
Por isso, vê se você não me atrapalha
Pois é este o ambiente que me calha...
Garçom, garçom!, traz um prato de aipim!?
III
É certa tua ida para a Austrália,
Ou pretendes machucar o meu jardim?
Pode ir, pode ir, não me embaralha
Eu sei sobreviver sem teu latim
Que não seja só fogo de palha
Para eu recuperar meu tamborim
Chamo o Romão, o Pinga e o Medalha
Dedilhando com afago o bandolim
Vamos pra noite fazer farra com a gentalha
Sem hora, sem cobrança ou represália
Nunca mais, nunca mais teu folhetim
Vai, vai, enche logo essa cangalha
Vou torcer por ti, mas não espalha...
Ei!, outra breja e dois dedos de gim!
Mendigo
Estendo a mão quando tu passas
Desfilando nudez em nosso quarto
O desejo irrompe como um parto
Solidão a dois que me devassa
De carícias e carinhos eu te farto
Em atitude recorrente me rechaças
A espada da tristeza me traspassa
E em mil pedaços me reparto
Imploro humilhado teu regaço
Meu amor desfaz-se no cansaço
De um mendigo miserável e maltrapilho
Com a alma esparramada no ladrilho
Recebo a esmola dos teus braços
Fecho os olhos, desisto, enfim, fracasso.
Soneto das Vinte
Quando abres teu sorriso
E teu olhar enviesado me invade
Perco a tez, perco o siso
Já não tenho paz, castidade
É como um sonho impreciso
De amor, dor, liberdade
É um grito, um sinal, um aviso
De correntes, asas e grade
Capitu, Diadorim, Tereza
És predadora e presa
És uma, és duas, és vinte
Livre, marginal e alteza
E quando sobes à mesa
És bela e cruel com requinte
As redes
Vede como é bonito o emaranhado
Na mente dócil da humana criatura
Não percebe a intrincada tessitura
Que mistura o traço reto do riscado
Vai levada engolindo cada agrura
Sem desculpa, por favor ou obrigado
Prosseguindo nesse pasto feito gado
E sustentando a pérfida estrutura
O caminho, acomodado!, é a rede
Não a que dormes nesse barco amontoado
Nem a que tira do rio teu alimento
O caminho, atordoado!, é a sede
Não a que matas com o líquido gelado
Mas a que vive do teu vasto sofrimento
A serpente e o abutre
Não vês a serpente enrodilhada
A subir com tesão por tua perna,
Feito o frio que te abraça na caverna
Que escolhes como cômoda morada
A peçonha que te mata lentamente
É o mesmo alimento que te nutre
Enquanto lá do alto o vil abutre
Namora o teu futuro putrescente
Desperta do teu sono adocicado
É o veneno obsceno que te entranha
E que te faz, assim, domesticável
Na caverna, ambiente controlado,
Livre para expor a sua sanha
A cobra já mostrou-se insaciável
À Escritora
(Para Hozana)
Urde pelo fio da palavra
O tempo a ceifar nossas rimas
Pois que são tão belas, tão primas
Do amor que aqui me lavra
Senhor de hormônios e enzimas
Nos arrima e escalavra
Nos lava, brota e deslavra
Ao sabor de vãs esgrimas
Segue o rumo do universo
Em verso, anverso e prosa
Liberdade sestrosa, divina
No mote da vida imerso
O corpo em contínua glosa
A alma em escrita fina
Soneto para passar o tempo É o tempo, meu amor, que nos maltrata Somos dele, todos meros prisioneiros Nos observa, nos confunde, nos retrata Utilizando-se de artifícios sorrateiros Nos faz crer que somos sempre os primeiros Enquanto mira com prazer da casamata Nos atinge, nos corrompe, nos delata Nos invade, somos todos hospedeiros Parasita discreto, por anos nos afaga Somos belos, somos fortes, somos tudo Nós o vemos como eterno passageiro Nem sentimos o encargo de meeiro Que o Senhor de seu cimo pontiagudo Nos impõe, indelével, como paga
Soneto da morte súbita
Amo com louvor a tua pele
Como a virgem entregue ao devaneio
Exibindo ao intruso o núbil seio
No anseio que o desejo se desvele
Mas a vida como touro de rodeio
Salta, bufa, rodopia e nos repele
Sem dar chance ao amor que se encastele
Foge pelo rumo de onde veio
Se o destino fosse rei inquestionável
Não teria maculado a sua linha
Ao torturar o cupido lentamente
E a mim de maneira deplorável
A crueldade como coisa comezinha
Dilacerando o sentimento pubescente
Soneto para brincar de corda
Era um cepo trigueiro e robusto
Esculpido no talento de artista
Impossível desviar-lhe a vista
Depois de recuperar-me do susto
Avizinhei-me com olhar de turista
E comprovei o quanto era augusto
Por pouco não me perco e desajusto
E vai preso mais um pobre sonetista
Nos momentos em que tudo se define
Falou de Deleuze, Couto e Canclini
De Frida e de Rosa, de batuque e de fado
Abatido pelo meu saber de fanzine
Ergui-me com o tolo olhar de vitrine...
Ai, meu Deus, que pescoço letrado!
Soneto para Carol
Do nada, um sono permanente
Abocanhava tristeza e alegria
Fazia do dínamo, reles apatia
Da natureza, choro inclemente
Era assim, cada noite, cada dia
Fosse fogo ou água, fosse gente
O coração, impávido e dormente,
Despertava leve quando via
Na história, lágrimas de Dante,
Contada por Anjos num graveto
Por um instante, mortal cianureto,
E a dor, eterna e circundante
Fenecia, tropeira e itinerante,
Perante um belo e ávido soneto
Soneto da Foice
A solidão me leva à poesia
Andarilho entregue à própria sorte
Flertando irresponsável com a morte
Em tácita e lenta agonia
Bússola inútil sem um norte
Envolto em obscena nostalgia
A cada noite esperando pelo dia
Da foice aguardando o seco corte
Na esperança de magnânima sentença
Da luz que a poucos alumia
Quando o universo em rara sinergia
Decreta cardíaca licença
Ao amor, pra que entre sem ofensa
Mas que em mim resvala e se desvia
Soneto Improvisado
Dar-te-ei um soneto improvisado
Desses feitos por acaso, no instinto
Meia garrafa de suave vinho tinto
E um coração recém recuperado
Costurado pelo amor que ainda sinto
E a esperança no rolar do raro dado
No arremesso displicente, apaixonado
Do cowboy intruso no recinto
Gira o cubo em cambalhas ordenadas
Como mato no inóspito oeste
Como as marcas de maligna cabala
De um destino sem as linhas já traçadas
A vitória galopando, ou a peste
E no tambor, uma indigna bala
Soneto do frio rarefeito
Como ousas chamar de drama
A dor que habita em meu peito
A lágrima em cristal perfeito
Que por minha face se derrama
Por não encontrar-te em meu leito
Por não arderes em mesma chama
O amor que à alma inflama
Para mim, princípio e preceito
Mas que dorme fatigado
Como sonho enluarado
Em inverno putrefeito
No coração rijo e blindado
Do alto do pico nevado
Envolto em ar rarefeito
A química dos homens
É química a nossa crueldade
No genoma desumano inserida
Caráter que levamos com a vida
Sentimento de suspeita veleidade
Aspergimos a penúria enlanguescida
Nas ruínas do que foi uma cidade
Sem cogitar a mais singela lealdade
À infância ainda há pouco amanhecida
Ela surge pelos ares flutuante
Entidade tantas vezes recorrente
Com a leveza de suave bailarina
A morte e seu rastilho fumegante
Nos corpinhos em monturo eloquente
Alimentos para as aves de rapina
Tu
Havia um beijo em tua boca
E em cada janela d'alma tua
Uma esfera gritante como a lua
A marcar minha trilha mais barroca
Me deixas assim, com a carne oca
Quando desvelas tua carne nua
Sobre a cama, neste céu onde flutua
Minha aura azul de “porra loca”
Esta pele que por fim te exalta
É a ardente chama que me queima
Do amor avesso, relumbrado
Tremente de inútil, fútil teima
Pelos tempos pertinentes devassado
Indócil, puro, feroz, peralta
Os Cândidos
É natural do Cândido a candura
Seja naquele que é nosso
Ou no outro que endosso,
Marcos da melhor Literatura
A voz do Cândido primeiro
No tempo, de cujas dores me aposso
Ecoa ainda, e ainda posso
Ouvi-la na voz do nosso brasileiro
Pois se os séculos as separam
Não separa a História em densidade
E seus fios de fina tessitura
Nos nós firmes que se amparam
No plano fulcral da eternidade
Voltaire e Antônio de rara envergadura
Soneto do Amor perdido em pandemia
Lembro de nós dois numa tarde prazenteira
Era o tempo em que ainda havia vida sobre a terra
Nos perdíamos em lenta e airosa brincadeira
Quando um corpo-alma a outro corpo-alma se descerra
A mente distraída via à frente a estrada inteira
Não previa em seu caminho puro íngreme serra
Ao amor não podia consentir qualquer barreira
Pelo amor iria resoluto para a guerra
Mas, do nada, como um susto, veio a pandemia
Que roubou da Terra insalubre pleno gesto
E do quimérico tempo toda alquimia
Te foste num sopro, sem grito ou manifesto
Levando apensa minha fé, minha utopia,
Deixando-me um peso, um farrapo, um triste resto
Dandara
Tu que és doce, bela Dandara
Trazes da nobreza de Palmares
A fortaleza, o alicerce, os pilares
E o sorriso que enfeitiça e nos odara
Já conheces a vida e seus pesares
Mas o amor, essa joia fina e rara
No coração furtado que sonhara
Habita maternal em mil lugares
No olhar tens a luz que hipnotiza
E no peito o coração em batucada
Na boca, a palavra que inebria
Como o rio em fúria profetiza
A primavera, colorida, enluarada
E o universo em eterna fantasia
Big Bang
Começou com a explosão das estrelas
Aspergindo no vazio infinito
Gametas gasosos de sonho contrito
Esperança fugaz, desejo de revê-las
No largo peito do universo
Berço da impaciência dos cometas
Pulsa a generosidade dos planetas
Fontes da vida e do adverso
Lavoura invadida pela praga
Que transforma em luz a noite vaga
E aspira à conquista inconsequente
De espírito atroz e putrescente
Saca indiferente a insone adaga
E espalha pelos campos sua chaga
Circoração
Meu coração é saltimbanco
Trupe de amor com malabares
Buscando paixões pelos olhares
Palhaço doce, terno e franco
Avança saltitante pelos bares
Atrás da bailarina distraída
Sobre o cavalo jaz adormecida
Esquecida nas lembranças de outros lares
Domador veloz e equilibrista
Leva sobre o ombro a bela artista
Inflamada pelos goles de corcel
Sorrisos num balde de papel
Mas a plateia cega e vigarista
Só aplaude com fervor o trapezista
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