top of page

Doces sortidos e outros poemas

ondovato9

Atualizado: 15 de abr. de 2022

Cantilenas


É sempre dezembro quando o sol teima

E tu trocas a pele em cantilenas sombrias

Te observo de longe, tu e tua caverna

A débil fogueira e a serpente enluarada


Lá no topo do paredão de pedra é Vênus


No começo foi só um clarão

Depois, fogo, fogo, fogo!

A Estrela Dalva sumiu

A fogueirinha foi engolida

A serpente eclipsada

Tu e tua caverna arderam

Só as tuas cantilenas eu continuo ouvindo

Dia após dia

Cada vez mais sombrias.






O Mar


Há em mim um mar de saudades

Desses de arquipélagos e monstros

Repleto de mistérios azuis e verdes

E de sonhos e culpas


Dali,

De minha ilhota vespertina

Eu via um tempo todo perdido de abraços

E de inúteis memórias

Eu tinha os pés fincados na areia

Branca como a última cal

Antes da densa bruma

Encobrir a estrela anã

Da luz primordial.


Rasgando a tez oceânica,

O jovem canoeiro aproxima-se e aporta

Amarra o barquinho em um tronco cor de ferro

E vem desenterrar meus pés.

Como é bom caminhar.

Obrigado, eu disse.

Não precisa agradecer, ele respondeu,

Agora é por sua conta, e me entregou o remo,

É só remar.


Eu fitei o horizonte, altivo:

Filhos, esperem-me, eu estou indo!





Sina


Desde que me entendo por gente

Trago na pele grafite

Brotam dos dedos palavras

Atuo nessas dobras do tempo

Onde não podes ver

Passei três décadas ao longe

E quis o criador das Fantasias

Que viesse comigo o caos

E só então entendi:

Às pessoas de minha estirpe

Não é permitido parar





As dores

Todas as dores que sinto

São dores do tempo

O coração trincado ali no canto

Foi uma preta

Aquela rachadura do lado esquerdo

Foi uma branca

Aquele pedaço faltando

Foi um caboclo

A lasca do outro lado

Foi uma ticuna

Isso sem falar do estômago

E do maldito nervo ciático






Mormaço

Uma esfera de mosquitos

De dois metros de diâmetro

Borbulhava bem à minha frente,

Flutuando perfeita

Sobre o vazio da metrópole.

Eu, da janela da área de serviço,

Observava o baile.

Um tédio feito de mormaços.

Estreitava o olhar

Na paisagem parada

Do sol brumoso.

Eu via as copas das árvores

Insensíveis ao ar sólido.

Do outro lado do vale

Rasgado pela torpe rodovia,

Reinam os prédios da Paulista.

Dei-lhes as costas em desagravo.

Uma beira de vento

Atravessou-me o pensar

E refrescou meu corpo quente.

Era o mar!






Súdito

És linda tu,

Do nó dos mamilos

Ao lóbulo das madeixas

Na crista curva das ideias

E na ponta luminosa dos prazeres

És linda tu,

No calcanhar dos lábios

Na unha das palavras

Na voz dos teus artelhos

Na língua dos não dizeres

És linda tu,

Da lágrima do teu sonho

À medula dos meus olhos

Na majestade de teus direitos

E na execução de meus deveres






A carcaça do mundo


No remanso da praia

Onde repousa a carcaça do mundo

O homem faz seu posto

Observa o outro homem

Do outro lado do mar

Onde repousa a carcaça do mundo

No remanso da praia

As aves rapinam a carcaça

O homem olha para o outro homem

O homem não olha para o mundo

O homem não vê a praia

O homem não nota a carcaça

O homem, na verdade, não enxerga nem o outro homem






Um homem só

Serena minha voz cansada

Quando os mares deixarem de pulsar

E as ondas em devaneios aquietarem-se

Quando o coração da Terra repousar

E os vulcões adormecerem no silêncio do tempo

Os pássaros, num lampejo suicida,

Interpelarão suas próprias asas

E quedarão em paralisia

Nesse instante impertinente,

Em que os homens já serão um só

E as diferenças um capítulo

Em nossa longa cartilha

Olharei nos olhos da morte

E lembrarei pela última vez

De teu rosto alegre

Antes de cerrar todas as linhas da memória






Os ásperos cantos também não estão na fotografia

No canto áspero da fotografia

Há um país.

Um país de cantos ásperos.

O país da fotografia

É o país do futuro,

Um futuro sem canto,

Um futuro áspero.

Porque os ásperos cantos

Não estão no país.

Talvez, nem no futuro.

A fotografia áspera

É o futuro do país.

Aquele do canto,

O país dos Ásperos!






A mosca do limbo

Eu sou uma pessoa morta,

Dessas calcinadas por dentro,

E não há pedra no caminho

Nem sol em desalinho

Que me faça recuar

A terra árida

Rachada em meu peito

E os rios de leitos secos

São a norma de meu tempo

E o nosso sangue

É a mistura imperfeita

De fuligem e medo

Na floresta em chamas

À borda do horizonte

Habita a mosca cega

Que nos lambeu as chagas

E nos roeu os ossos

É lá que miro a bala

Que vai nos salvar do limbo






Renascimento

Se renasço ave,

Penas azuis ou verdes

Cintilantes, porque brilham de êxtase

Minhas asas alcançam o céu,

Uma imagem da liberdade

Se renasces ar,

Imensidão, universo meu

Abrigo ao sustentar o voo

Espiritual e pulsante

Dentro de ti.

Só teu, o meu amor.






Nau

Já não me navegas

Já não me singras.

Não sou mais teu mar revolto

Ou mesmo calmo.

Não mais me aferes,

Se me deságuo, se me desalmo

Não sou mais a mágica

Química de água e sal.

Sou só o porto,

Pra onde vens à noite

E repousas tua nau.





Por ti!

É por ti que a Terra gira,

Criança!

As engrenagens barulhentas do planeta

Vão cuspindo suas certezas

Pelo chão queimado da floresta

Por ti,

Criança!

Vês os homens e seus desmandos

Em pleno exercício do desprezo

A outros homens, seus, nossos irmãos

É por ti,

Criança!

Na lamínula observamos a morte

A nos espreitar na solidão

Da bala branca no peito preto

Por ti,

Criança!

Mas, o esforço dos povos,

A luta da imensa família humana,

As passeatas, as revoluções e os sonhos

Também são por ti,

Criança!

A chuva do fim da tarde,

O frio da madrugada, as pirâmides, os elefantes, os golfinhos,

As samaumeiras, as estrelas, os livros, a Poesia, o pôr-do-sol,

É tudo por ti,

Criança!

O Amor, esse que nos refaz,

Metamorfose dos sentidos,

Motor supremo de nossas vidas,

É por ti,

Criança!

E quando meus olhos minguarem,

Quando minha pele ociosa assertanar

E o ar, aos poucos, deixar de corromper minhas entranhas

E a alma, enfim, se despregar rumo ao vazio extremo

Lembra!

Foi tudo por ti!

Só então deixarás de ser criança.






KA-22

É por ti

As engrenagens do planeta

As certezas da floresta Criança

O homem pleno

Irmãos

O peito na lamínula da solidão

O esforço da família humana

Os sonhos e a chuva da madrugada

Os golfinhos e a poesia do sol

O Amor de nossas vidas

Meus olhos minguantes

A pele assertanada

E a alma

Por ti,

Criança!






Skyline

Entro em casa

E encaro o meu vazio

O tempo turvo das ausências

Lá fora o calor abraça e

Desenha a skyline ambígua

E aqui

No chão molhado dos pesares

Não há sol que não me tarde

Velejo na vil fumaça

Do asfalto

E quase digo tudo quando calo

Se dorme e treme

A minha carne

Se queimo e sonho

Sem alarde

É que sou outro, Amor,

Controverso






O Grito

Há neste prédio um barulho

Desses que vagam pelas tubulações

Sem respeitar as dores e as enfermidades

Nem os horários

Ou as normas de conduta

É como um grito preso nas teias de PVC

Ele rasga os vazios

E encontra a liberdade pelas frestas

Pelos vãos inusitados

Mas não é do homem que me espreita pelo ralo

Ele não tem boca






Dorido


A dor é evidente

Crava a carne íngreme

Devassa o osso crasso

Transgride o músculo vago

E grita estridente

Escala a mente cítrica

Sobe pelo nervo déspota

Chega à pele tácita

E jorra cadente

Passa pelo posto dálmata

Corta a nuvem bússola

Para no bando sábado

E salta imprudente


A dor é lógica

Não é acidente






Chuva Pouca


Não te assusta que é chuva pouca

Um cisco no olho de Deus

Uma fenda nos pesares do mundo

Segue teu caminho

Pelos sinuosos rumos

Das estradas fluidas

É só uma tempestade amazônica

Quase nada

Precisas levar essa gente barrenta

Para os lares difusos

Onde mora a invisibilidade

A que estamos todos

Condenados







Facetas

Trago em minha face mil facetas

Todas fáceis

Muitas fúteis

Poucas ferozes

Flerto, fátuo,

Com a cidade

E nada sinto

Dentre o nada

Durmo, acordo, como,

Bebo o caminho, trepo,

Vivo!

Na mesa dos algoritmos

Sou só mais um

Codificado






O Homem vê!


Numa dessas tardes sólidas do Norte

Em que o azul é um páramo celeste

E o calor faz festa nas nervuras,

O homem vai!

Ele vai de máscara

Porque assim mandam

As conveniências e as necessidades.

Os barcos atracados à quentura

Oscilam indecisos na maré cheia.

É o respirar da metrópole

E o homem vê!

Ali, por trás da máscara descartável

E dos óculos escuros,

No entrelaçamento de mastros e cordas

E no voo farto da rapina,

O homem vê!

Ele vê a finitude dos tempos

E o amparo delicado de todos os deuses

Ao limiar soturno de todas as mortes.

Vai, homem!,

Escapar de tuas máscaras.







A Muda


Às vezes um poema muda

De repente se transforma

No meio de um verso,

De uma ideia,

De um plano.

As primeiras gotas de chuva

Marcando a calçada

O cheiro do cimento molhado

A água evaporando

Os estados da matéria

Em pleno gozo

Um ménage sensorial

Sem a mínima vergonha.

Ah, um poema muda, sim!

Muda em um beijo

Em um olhar

Ou na bala que matou o beijo

Ou no homem que não tem olhar

Às vezes, as palavras,

As palavras,

Palavras!

Às vezes as palavras crispam-se.

Travam-se umas às outras

E não há poema.

É por isso que a gota de chuva na calçada é tão importante






Limo


Minha palavra é folha ao vento

Vaga dispersa e tende ao limo

Não tem solo, muro

Não tem arrimo

Morre, quando muito,

Em vão profundo

Nunca cimo

E eu, que nada sou

Sem teu abraço

Não me animo

Aceito teus olhos mudos

Se não te vejo

E ao meu desejo

Se versejo

Nada primo






Fronteiras

Pela hora do fim da tarde

Quando o corpo rescendia a guardado

Parava para ver o tempo

O tempo de todos os que foram

De todos que já passaram

Os olhos mirando o firmamento

A mão a apoiar o mundo

Atlas reverso das cabeças modernas:

As que abarcam o globo inteiro em suas fronteiras

Mais uns dois ou três comprimidos

Para suportar a sanidade






Olho d’água

Do nada,

Do nada veio a poesia

Brotou assim,

Como um olho d’água

Desses que surgem

Da terra

Da pedra

De dentro

E foi invadindo

Rasgando os chãos

Levando os corpos

Lavando as almas

Satisfazendo os vazios

Até formar,

No fim de todos os olhares,

Um grande rio de ausências






A Dama

Nós já temos um invento, meu Amor: o Tempo

E ele não se perde

A infância se foi

A madrugada se foi

E a tevê já anuncia as próximas tragédias

O resto é tudo!

O sol está a pino, meu Amor

Mas a tarde vai ser passageira

Como todas as tardes

Passará como um raio

Uma estrela rasgando a carne do crepúsculo

O resto é tudo, meu Amor

A bela dama, vestindo negro

Aponta no topo da escada

Para descer à nossa festa

E cumprimentar os convidados

Um a um, os conhece a todos

Até as crianças corredeiras

O resto é tudo, meu Amor

A Velha Dama desliza no salão

E estende seus longos braços para nós

Vejo a bruma de seu rosto em par com a Lua cheia

E choro, meu Amor!

Porque o resto, agora,

É nada






Confissões

Sim,

Eu estive nas ruas de tráfego invertido

Invertendo a ordem das coisas

Ordenadas de maneira nobre

Como se fosse nobre

Ter a cara limpa

E as mãos sujas

Sim,

Eu vi as bandeiras sendo agitadas

Em uma praça repleta de sonhos

Eu vi a chuva inundar as veias da cidade

E vi minha cara metade

Se matar em quarto público

Sim,

Eu vi os homens e seus quipás

E vi as burcas da ignorância

Entregarem-se aos rituais

De dor e morte

Eu vi sobre o balcão das consonâncias

O sangue de todos os povos

Sim,

Eu sinto cada um de meus ossos

E sei que o amargo será doce

Quando as mentes sucumbirem

Aos algozes da última seara

Por isso vendi minha alma

Lá no início dos tempos

À luz da fantasia

Por isso,

Eu lavo as mãos

E sujo a cara






Retrato

Este é teu retrato telepático

Mentes gêmeas

Em cores gêmeas

O vermelho de teu sangue

A rolar na escuridão

Da noite de meu luto






Condenados

Foi ali,

Nas brumas

De uma noite fria

Que ela sentenciou

Nossas vidas

Com palavras doces




Um palmo - Lira 25

As Linhas

Niemeyericamente traçadas,

Uma curva longa

E duas retas buscando-se,

Num encontro ritmado,

Na ponta de uma

Meia Lua

Tudo, tudo tão calmo

E a tua boca a um palmo

As Luzes

Bandeiramente orvalhadas,

Duas pretitas leves

E um brilho paralisante,

Em talhos esmerados,

À ponta de uma

Teia nua

Tudo, tudo tão calmo

E os teus olhos a um palmo




Rebentação


O mar que hoje arrebenta em mim

Tem os teus olhos

E teu sorriso de espuma

Tem o sabor de brisas passadas

E de ventos futuros

De conchas recolhidas na areia

Num tempo de palavras mortas

Mareja-me novamente

Antes que desague-me.




Tapete

A nuvem em que miras teus passos

É apenas um velho tapete macio

Onde tantas vezes nos jogamos

Ingrata vida

Esta que nos leva para longe

Distâncias tamanhas

De inteiros pensamentos

E concretudes fugidias

Os fugazes e inúteis vácuos

Das sinapses cansadas

Das solidões perdidas

Olha o céu!

Ainda vês o azul?




Sempre acordo em franco desespero

Índole maldita em sonho velho

Nada de abstrato em pesadelo

Delírio sequioso em sono breve

Rastros de agonia em noites gêmeas

Ontem

Morrerei

Eternamente




Loteria

Cabelos brancos

Lentidão sem norte

Ziguezague no barranco

Um bilhete, rara sorte

Uma pedra, um cachorro,

O susto!

O grito mudo, o corte

O tempo – truste -

Forte

O sopro da vida

O tento

Suporte

Para a agonia,

No cais da alma,

Aporte

O prêmio,

Ilustre recorte,

Perdeu-se

Na relva,

No vento,

Na morte.




O Fio


A carne é leve

Quando

À carne toca

Elétrica

Ligeiro remoinho

Adentro

A carne leve

Quando

Toca a carne

Artérias

Adentro

O fio a conduzir-te

Adentro

A carne leve

À carne

Leve

Adentro

Elétrica Artéria

O fio a conduzir-te

O fio

A carne na carne

Leve

À




Uma Canção para a Lua

Surge a Lua,

Atrás das nuvens,

Seminua.

O seu corpo num corpete afogueado

Será sanha?

Será sonho?

Será sina?

Concubina do universo alardeado

Tu que vives em constante caravana

Outrora tão eterna e cultuada

Hoje, um contorno,

Mero adorno

À fauna urbana

Nos atice

Essa crendice,

Deusa vã, predestinada

Te desnuda,

Lua bela, Lua mansa

É nossa a dança

De te ver abandonada

Pelos olhos apressados,

Corriqueiros,

Dessa gente que tudo vê,

Mas não vê nada.




Lira 60 (Parte III) – Lira das despedidas

Despeço-me!

Despeço-me da velha vida,

De velhos amores,

Dos hábitos vulgares.

Diagramo no papel em branco

Duas páginas perenes.

Desenho o mapa com calma,

Disciplina recém-adquirida,

Dedico especial atenção aos

Detalhes mais

Discretos.

Deles é que surge o

Deleite e o

Defeito.

Dádiva nossa.

Divina. Por isso,

Declaro-me!

Declaro-me refém do amor,

Entrego-me,

Feliz.




Avôs

Estou te ouvindo

E as lágrimas teimosas

Insistem em conhecer meu queixo

Eu deixo.

Cheiro de sapato novo

Um filhote de cachorro

O vento nas folhas da árvore

Um sonho bom

O barulho do gás escapando da garrafa de refrigerante

A fila das formiguinhas carregando comidonas

As luzes vermelhas do congestionamento vistas de cima do viaduto

- O vovô rindo do Chaves

A chuva fria no asfalto quente

O banho quente no corpo frio

Um buquê de flores coloridas

O carro dos churros passando pela rua

Vá em paz, meu velho.

Vou ficar por aqui.

Não há mais tempo




Gabriela

Bate o vento

Em Gabriela

Espalhando suas flores amarelas

Como eu queria ser assim:

pés firmes no chão,

enquanto giram as manivelas




Abismo

Abisma-me, soberana,

Em tuas falas

Sofre-me em verbais sobressaltos

E eu, silente, esvaio-me,

Soturno, solerte

Singro-me, sangro-me

Por ser eu mesmo

Abismo




O Vestido

Teu vestido vermelho,

Curto,

Se funde e transparece,

À parede da autoescola.

Já tuas pernas brancas,

Luzidias,

Chocam o asfalto molhado

Pelo carpir da madrugada.

Balcão inóspito o que me escora,

Estou dentro,

Quase protegido dos feitiços

Do vestido vermelho,

Que desaparece,

Na medida em que surto.




O Lúdico

Ludearemos nossos corpos

À beira-marte

Assim, alvoroçados

Pelo mar de gente

Tu e teu cofre

Em suposto baluarte

Eu em palestra

Vil, liquidescente

Lunearemos nossos copos

A um pedido

Servis, anunciados

Pelo tempo já premente

Tu e teu chofre

N’amor-tecido

Eu à mesa

Não perco o sol poente




Estrelas

Olhar para o céu e ver estrelas

E tê-las

E vê-las

E vê-las como velas

Luzeiros truncados

Arminhos

Encaixilhados nas janelas

Olhar para o céu e ver estrelas

E vê-las

E tê-las

E tê-las como telas

Linhas trançadas

Pergaminhos

Segredos guardados em capelas

Olhar para o céu e ver estrelas

E tê-las

E vê-las

E tê-las como trelas

Mapas traçados

Caminhos

Para as nossas caravelas


Blasfêmea


Quantas vezes nos vimos, enamorados, só eu e tu,

Perdidos nos devaneios, nos rompantes

Quando bailavas, imponente,

Sobre as rugas do mar

Ou serena, embalavas meu sono

Quantas vezes te procurei

No firmamento de meus sonhos

Ou nos olhos amados

Ou nos seios da dor

Tu estás em meu peito,

Como um coração boêmio

Que não para de pulsar-te.

A ti, parceira de fiel intimidade, pergunto:

Quando, quando, quando, meu amor,

O homem deixou de te enxergar

No céu de nossa noite?




A Crise

Salve, Velho Irmão,

Saúde!

Tu pelas ruas, pedinte

Eu às calçadas, negante

Geneticamente,

Somos como tal qual,

Irmãos

Praticamente,

Somos como qual tal,

Opostos

Pareces tão livre

Na tua mendicância

Uma demência tardia

Livre,

Como disse,

Do lado de lá da cordilheira

Subo, agora,

A íngreme montanha,

Caro Irmão,

Eu chego lá!




O Acaso


Joguei a sorte

No inevitável buraco do acaso

Sorri a cada passarinho que voou:

O azul, o verde, o multicolorido

Não fiz mais planos

Fui displicente

Deixei o cargo de pessoa

Apenas para os competentes

E foquei, proativo,

Tão somente na sobrevivência

Daqui mesmo, de minha rede,

De onde posso ver o mar




Abraço


A tarde repousa a mão

Sobre as calmas águas da baía

O lustre humano,

Holofote vigoroso e delicado

Sincroniza o momento

E paralisa o tempo

De um abraço




Lira

Estrela cunhã da minha Lei

Ah, quando te vejo

Alvoroçar minha alvorada

O sol se pondo

E tu,

Serpente terçã,

Com jeito de algodão doce

Aos versos e inversos

Voz de seresta

Sorriso eterno

Lábios

Lábios

Lábios

Serena, manhã

Eu sinto o tremor

Das cinzas

E a luz do fim

Parece longe

Vejo tão bem o caminho

As curvas e os desvios

Mas, assim que acendo o isqueiro

Tudo, tudo volta ao normal




O Açougue de Mar Becker


Assim que vi as carnes expostas

No açougue clandestino de Mar Becker

Sabia que eram tuas

Só tu andas por aí

Com a alma sem invólucro

A nudez escancarada

E o olhar de fogo

Anunciando o nascimento das estrelas




Corpo, Alma e Urubus


Em algum lugar do mar sem fim

Tua alma flui

Ela flutua sobre a lâmina calma

De um pálido azul

Da areia fina, cor de nuvem

Teu corpo rijo e nu

Acompanha o caminhar

Da carne crua

Não mais se pertencem

Não mais se completam

Vivem agora em planos separados


Os urubus que se aproximam

Nem sabem o que é alma




Inóculo

Quando a chuva e o vento

Desrrumam lá pras bandas da praia

É que a inalegria

Se apruma premente nos peitos cansados

E não tem pele morena e cabelos cacheados

Que nos arranquem

O sorriso sincero e mareado

Afogado na nublagem do tempo.

Agora vem,

Abre teus olhos medonhos

E enverga tuas asas de morcego

Deixa eu cravar meus dentes afiados

E inocular angústia e dor

Na jugular do teu sossego




Crack

A lua quando despe a madrugada

É só

É forte

É calma

A fonte, estúpida morada

Polui

Maltrata

Estraga

A dor quando veste a namorada

É pó

É morte

É alma

A fronte, fervente e iluminada

Dilui

Retrata

E traga




Dogging


Ao parque

Irás apenas de sobretudo

Sobre nada

Num gesto rápido

Soltarei o botão

E teus peitos intumescidos

Saltarão para a noite

Os mamilos

Regidos pelo frio

Apontarão duros

Para as árvores

Onde o vento

Produz gemidos

De suave prazer


Os dedos em frenesi

Toques e sustos

As sombras em movimento

Os pelos

Os paus

As mãos

Os lábios

E as pernas

Receptivas

Escorre a seiva

Látex

A boca leve

A língua lenta

Murmúrios,

O grito preso

Explode

Os pássaros em pavor

Misturam suas asas

Bolinam-se no ar

E suas silhuetas

Encobrem

O céu cinza




Intramenino

Serena a tua voz

Perante a noite

Líquida donzela intermitente

Sobre o plano amadeirado

Mia se oferece

Lúdicas palavras

Sob o véu sideral ultracorpóreo

Intramenino sobranceiro

Anímico silêncio te anuncia

Nas luzes vermelhas que se param

O felino é só um brilho

A devorar tua tez morena




Rapina

Um gavião plana

A trinta metros do chão

Pombos arrulham

E refugiam-se sob as telhas

Das casas quase pobres

Periquitos precipitam-se em bando

Diante da visível ameaça

O gavião a tudo observa

Hoje não quer penas

No meio do mato do terreno baldio

Um filhote de gato

Respira desamparo

Na inútil desesperança do abandono

Saltita assustado no desconhecido

Rapinamente o gavião mergulha

O verde bruxuleia

Sucumbindo à força das asas

O pequeno gato agora está voando

Ainda se debate

Com as garras fincadas em seu frágil corpo

Tem uma última visão

Mas não entende

O céu que se aproxima

Pombos e periquitos

Podem voar livremente

Até amanhã.




A pipa

Do alto da laje,

O pobre menino se diverte.

Encara a surrada pipa

De vários dias,

Conduzida pelas mãos ágeis

E gestos vigorosos,

Adquiridos ao longo das batalhas.

É o menor dos contendores.

Hoje respeitado.

Entre os dedos corre a linha,

Áspera e cortante.

Alquimia de família.

O avô de barbas brancas,

Cadeira na laje,

Cigarro de palha

Pendendo na ponta dos lábios.

Ali, naquela pipa avoarada,

Ainda sente o fio de sua infância.




Plasma

Exaspera-me rever-te assim:

teus olhos de fogo

apontados para o nada.

O trem passando ao fundo,

vermelho.

E o rio que nos separa.

As janelas azuis e o abajur lilás

deste novo bar

são apenas o sereno cenário

em que nos marcamos.

Duas quadras à frente

vi as bandeiras e os cartazes.

Ouvi os gritos

incertos,

mas inclementes.

Num segundo plano,

vi a dor que surgia em tua boca.

Nem o líquido dourado em teu copo

disfarçava teu desconforto.

Era a paz que te perturbava.

Preferias o trem.

Preferias a passeata.

Preferias até o rio nauseabundo.

Ou a lua sobre nossas mentes silenciosas.

A tevê desligada

refletia as imagens da outra tevê,

que olhavas sem ver.

Plasma!

Em várias partes do mundo

pessoas morriam por causas justas,

ou injustas.

Aqui não.

Já estávamos todos mortos.




Lira do Fim da Tarde

Cai a chuva

Mórbida e lenta

Dos olhos marejados da Metrópole

Lágrimas gotejadas

Lânguidas

Morrendo frias

No concreto chão

Da indiferença

Nem a vibrante correria

Dos transeuntes

Nem o festival de guarda-chuvas negros

E sombrinhas coloridas

Nem as invernais indumentárias

E os cachecóis enrodilhados

Nem teu rosto nu

Nem tuas palmas longilíneas

Disfarçam

A turbidez da nossa

Trôpega humanidade

Somos produtos

Mercadorias acorrentadas

Em códigos de barra

Em números e senhas

Nas regras decretadas

Por nossos pares ímpares

Pelos laços indecifráveis

Da conveniência

E do conformismo

Há muito perdemos o prumo

Há muito nos entregamos

À resistência morta

Das aparências

Caímos em desuso

Como uma palavra

Perdida nas páginas amareladas

De um velho dicionário




A paisagem

Assim que chego

À janela me deparo

As quatro torres

Estão lá

No mesmo lugar

A cruz azul

Mais à esquerda

A fábrica de lâmpadas

Num outro plano

A escola

A creche

A invasão

O shopping

Ao lado

Das quatro torres

Um neon de motel

Que não para

A sonora rodovia

Cortando tudo

As copas

Separando os planos

No céu

As luzes passam

Estrelas fixam

Um meteoro

Os pássaros passam

Pessoas não

São pássaros

Na janela

Me Deparo

Comigo

Muito mais afeito a pássaro

Que pessoa




Poema para Inaê

Te amo como amo o mar

Em suas distâncias

Em suas lonjuras

Eu aqui

Ele lá

E um mundo de terras

Entre nós

Lembro de quando o mar nasceu

Gotas de água

Brotando dos pequenos olhos

Olhos d'água

E uma luz...

Ah, essa luz

Nos criou desmemórias

Nos plantou descobertas

A vida surgiu nesse mar

Fio de lágrimas

Depois, farto oceano

Ondulado

E a calma?

E a calma que ele nos traz?

A paz que nos transmite

Em seus olhos de luz

Te amo como amo o mar

Lembro de quando nasceste

Fio de água

Hoje,

Farto oceano

Encantado




Amor ao pé da página

Asteriscos e aspas se amavam.

Percorriam parágrafos

e textos inteiros,

completos.

As linhas iam e vinham,

as palavras vibravam,

as vírgulas se intrometiam,

os pontos,

carrascos,

sempre acabavam com tudo.

Não tinham chance

entre parênteses.

Nunca se viam.

Aguardavam ansiosamente

por furtivos e breves encontros

num ou noutro rodapé.




89 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page