Cantilenas
É sempre dezembro quando o sol teima
E tu trocas a pele em cantilenas sombrias
Te observo de longe, tu e tua caverna
A débil fogueira e a serpente enluarada
Lá no topo do paredão de pedra é Vênus
No começo foi só um clarão
Depois, fogo, fogo, fogo!
A Estrela Dalva sumiu
A fogueirinha foi engolida
A serpente eclipsada
Tu e tua caverna arderam
Só as tuas cantilenas eu continuo ouvindo
Dia após dia
Cada vez mais sombrias.
O Mar
Há em mim um mar de saudades
Desses de arquipélagos e monstros
Repleto de mistérios azuis e verdes
E de sonhos e culpas
Dali,
De minha ilhota vespertina
Eu via um tempo todo perdido de abraços
E de inúteis memórias
Eu tinha os pés fincados na areia
Branca como a última cal
Antes da densa bruma
Encobrir a estrela anã
Da luz primordial.
Rasgando a tez oceânica,
O jovem canoeiro aproxima-se e aporta
Amarra o barquinho em um tronco cor de ferro
E vem desenterrar meus pés.
Como é bom caminhar.
Obrigado, eu disse.
Não precisa agradecer, ele respondeu,
Agora é por sua conta, e me entregou o remo,
É só remar.
Eu fitei o horizonte, altivo:
Filhos, esperem-me, eu estou indo!
Sina
Desde que me entendo por gente
Trago na pele grafite
Brotam dos dedos palavras
Atuo nessas dobras do tempo
Onde não podes ver
Passei três décadas ao longe
E quis o criador das Fantasias
Que viesse comigo o caos
E só então entendi:
Às pessoas de minha estirpe
Não é permitido parar
As dores
Todas as dores que sinto
São dores do tempo
O coração trincado ali no canto
Foi uma preta
Aquela rachadura do lado esquerdo
Foi uma branca
Aquele pedaço faltando
Foi um caboclo
A lasca do outro lado
Foi uma ticuna
Isso sem falar do estômago
E do maldito nervo ciático
Mormaço
Uma esfera de mosquitos
De dois metros de diâmetro
Borbulhava bem à minha frente,
Flutuando perfeita
Sobre o vazio da metrópole.
Eu, da janela da área de serviço,
Observava o baile.
Um tédio feito de mormaços.
Estreitava o olhar
Na paisagem parada
Do sol brumoso.
Eu via as copas das árvores
Insensíveis ao ar sólido.
Do outro lado do vale
Rasgado pela torpe rodovia,
Reinam os prédios da Paulista.
Dei-lhes as costas em desagravo.
Uma beira de vento
Atravessou-me o pensar
E refrescou meu corpo quente.
Era o mar!
Súdito
És linda tu,
Do nó dos mamilos
Ao lóbulo das madeixas
Na crista curva das ideias
E na ponta luminosa dos prazeres
És linda tu,
No calcanhar dos lábios
Na unha das palavras
Na voz dos teus artelhos
Na língua dos não dizeres
És linda tu,
Da lágrima do teu sonho
À medula dos meus olhos
Na majestade de teus direitos
E na execução de meus deveres

A carcaça do mundo
No remanso da praia
Onde repousa a carcaça do mundo
O homem faz seu posto
Observa o outro homem
Do outro lado do mar
Onde repousa a carcaça do mundo
No remanso da praia
As aves rapinam a carcaça
O homem olha para o outro homem
O homem não olha para o mundo
O homem não vê a praia
O homem não nota a carcaça
O homem, na verdade, não enxerga nem o outro homem
Um homem só
Serena minha voz cansada
Quando os mares deixarem de pulsar
E as ondas em devaneios aquietarem-se
Quando o coração da Terra repousar
E os vulcões adormecerem no silêncio do tempo
Os pássaros, num lampejo suicida,
Interpelarão suas próprias asas
E quedarão em paralisia
Nesse instante impertinente,
Em que os homens já serão um só
E as diferenças um capítulo
Em nossa longa cartilha
Olharei nos olhos da morte
E lembrarei pela última vez
De teu rosto alegre
Antes de cerrar todas as linhas da memória

Os ásperos cantos também não estão na fotografia
No canto áspero da fotografia
Há um país.
Um país de cantos ásperos.
O país da fotografia
É o país do futuro,
Um futuro sem canto,
Um futuro áspero.
Porque os ásperos cantos
Não estão no país.
Talvez, nem no futuro.
A fotografia áspera
É o futuro do país.
Aquele do canto,
O país dos Ásperos!
A mosca do limbo
Eu sou uma pessoa morta,
Dessas calcinadas por dentro,
E não há pedra no caminho
Nem sol em desalinho
Que me faça recuar
A terra árida
Rachada em meu peito
E os rios de leitos secos
São a norma de meu tempo
E o nosso sangue
É a mistura imperfeita
De fuligem e medo
Na floresta em chamas
À borda do horizonte
Habita a mosca cega
Que nos lambeu as chagas
E nos roeu os ossos
É lá que miro a bala
Que vai nos salvar do limbo
Renascimento
Se renasço ave,
Penas azuis ou verdes
Cintilantes, porque brilham de êxtase
Minhas asas alcançam o céu,
Uma imagem da liberdade
Se renasces ar,
Imensidão, universo meu
Abrigo ao sustentar o voo
Espiritual e pulsante
Dentro de ti.
Só teu, o meu amor.
Nau
Já não me navegas
Já não me singras.
Não sou mais teu mar revolto
Ou mesmo calmo.
Não mais me aferes,
Se me deságuo, se me desalmo
Não sou mais a mágica
Química de água e sal.
Sou só o porto,
Pra onde vens à noite
E repousas tua nau.
Por ti!
É por ti que a Terra gira,
Criança!
As engrenagens barulhentas do planeta
Vão cuspindo suas certezas
Pelo chão queimado da floresta
Por ti,
Criança!
Vês os homens e seus desmandos
Em pleno exercício do desprezo
A outros homens, seus, nossos irmãos
É por ti,
Criança!
Na lamínula observamos a morte
A nos espreitar na solidão
Da bala branca no peito preto
Por ti,
Criança!
Mas, o esforço dos povos,
A luta da imensa família humana,
As passeatas, as revoluções e os sonhos
Também são por ti,
Criança!
A chuva do fim da tarde,
O frio da madrugada, as pirâmides, os elefantes, os golfinhos,
As samaumeiras, as estrelas, os livros, a Poesia, o pôr-do-sol,
É tudo por ti,
Criança!
O Amor, esse que nos refaz,
Metamorfose dos sentidos,
Motor supremo de nossas vidas,
É por ti,
Criança!
E quando meus olhos minguarem,
Quando minha pele ociosa assertanar
E o ar, aos poucos, deixar de corromper minhas entranhas
E a alma, enfim, se despregar rumo ao vazio extremo
Lembra!
Foi tudo por ti!
Só então deixarás de ser criança.
KA-22
É por ti
As engrenagens do planeta
As certezas da floresta Criança
O homem pleno
Irmãos
O peito na lamínula da solidão
O esforço da família humana
Os sonhos e a chuva da madrugada
Os golfinhos e a poesia do sol
O Amor de nossas vidas
Meus olhos minguantes
A pele assertanada
E a alma
Por ti,
Criança!
Skyline
Entro em casa
E encaro o meu vazio
O tempo turvo das ausências
Lá fora o calor abraça e
Desenha a skyline ambígua
E aqui
No chão molhado dos pesares
Não há sol que não me tarde
Velejo na vil fumaça
Do asfalto
E quase digo tudo quando calo
Se dorme e treme
A minha carne
Se queimo e sonho
Sem alarde
É que sou outro, Amor,
Controverso
O Grito
Há neste prédio um barulho
Desses que vagam pelas tubulações
Sem respeitar as dores e as enfermidades
Nem os horários
Ou as normas de conduta
É como um grito preso nas teias de PVC
Ele rasga os vazios
E encontra a liberdade pelas frestas
Pelos vãos inusitados
Mas não é do homem que me espreita pelo ralo
Ele não tem boca
Dorido
A dor é evidente
Crava a carne íngreme
Devassa o osso crasso
Transgride o músculo vago
E grita estridente
Escala a mente cítrica
Sobe pelo nervo déspota
Chega à pele tácita
E jorra cadente
Passa pelo posto dálmata
Corta a nuvem bússola
Para no bando sábado
E salta imprudente
A dor é lógica
Não é acidente
Chuva Pouca
Não te assusta que é chuva pouca
Um cisco no olho de Deus
Uma fenda nos pesares do mundo
Segue teu caminho
Pelos sinuosos rumos
Das estradas fluidas
É só uma tempestade amazônica
Quase nada
Precisas levar essa gente barrenta
Para os lares difusos
Onde mora a invisibilidade
A que estamos todos
Condenados
Facetas
Trago em minha face mil facetas
Todas fáceis
Muitas fúteis
Poucas ferozes
Flerto, fátuo,
Com a cidade
E nada sinto
Dentre o nada
Durmo, acordo, como,
Bebo o caminho, trepo,
Vivo!
Na mesa dos algoritmos
Sou só mais um
Codificado
O Homem vê!
Numa dessas tardes sólidas do Norte
Em que o azul é um páramo celeste
E o calor faz festa nas nervuras,
O homem vai!
Ele vai de máscara
Porque assim mandam
As conveniências e as necessidades.
Os barcos atracados à quentura
Oscilam indecisos na maré cheia.
É o respirar da metrópole
E o homem vê!
Ali, por trás da máscara descartável
E dos óculos escuros,
No entrelaçamento de mastros e cordas
E no voo farto da rapina,
O homem vê!
Ele vê a finitude dos tempos
E o amparo delicado de todos os deuses
Ao limiar soturno de todas as mortes.
Vai, homem!,
Escapar de tuas máscaras.

A Muda
Às vezes um poema muda
De repente se transforma
No meio de um verso,
De uma ideia,
De um plano.
As primeiras gotas de chuva
Marcando a calçada
O cheiro do cimento molhado
A água evaporando
Os estados da matéria
Em pleno gozo
Um ménage sensorial
Sem a mínima vergonha.
Ah, um poema muda, sim!
Muda em um beijo
Em um olhar
Ou na bala que matou o beijo
Ou no homem que não tem olhar
Às vezes, as palavras,
As palavras,
Palavras!
Às vezes as palavras crispam-se.
Travam-se umas às outras
E não há poema.
É por isso que a gota de chuva na calçada é tão importante
Limo
Minha palavra é folha ao vento
Vaga dispersa e tende ao limo
Não tem solo, muro
Não tem arrimo
Morre, quando muito,
Em vão profundo
Nunca cimo
E eu, que nada sou
Sem teu abraço
Não me animo
Aceito teus olhos mudos
Se não te vejo
E ao meu desejo
Se versejo
Nada primo
Fronteiras
Pela hora do fim da tarde
Quando o corpo rescendia a guardado
Parava para ver o tempo
O tempo de todos os que foram
De todos que já passaram
Os olhos mirando o firmamento
A mão a apoiar o mundo
Atlas reverso das cabeças modernas:
As que abarcam o globo inteiro em suas fronteiras
Mais uns dois ou três comprimidos
Para suportar a sanidade
Olho d’água
Do nada,
Do nada veio a poesia
Brotou assim,
Como um olho d’água
Desses que surgem
Da terra
Da pedra
De dentro
E foi invadindo
Rasgando os chãos
Levando os corpos
Lavando as almas
Satisfazendo os vazios
Até formar,
No fim de todos os olhares,
Um grande rio de ausências
A Dama
Nós já temos um invento, meu Amor: o Tempo
E ele não se perde
A infância se foi
A madrugada se foi
E a tevê já anuncia as próximas tragédias
O resto é tudo!
O sol está a pino, meu Amor
Mas a tarde vai ser passageira
Como todas as tardes
Passará como um raio
Uma estrela rasgando a carne do crepúsculo
O resto é tudo, meu Amor
A bela dama, vestindo negro
Aponta no topo da escada
Para descer à nossa festa
E cumprimentar os convidados
Um a um, os conhece a todos
Até as crianças corredeiras
O resto é tudo, meu Amor
A Velha Dama desliza no salão
E estende seus longos braços para nós
Vejo a bruma de seu rosto em par com a Lua cheia
E choro, meu Amor!
Porque o resto, agora,
É nada
Confissões
Sim,
Eu estive nas ruas de tráfego invertido
Invertendo a ordem das coisas
Ordenadas de maneira nobre
Como se fosse nobre
Ter a cara limpa
E as mãos sujas
Sim,
Eu vi as bandeiras sendo agitadas
Em uma praça repleta de sonhos
Eu vi a chuva inundar as veias da cidade
E vi minha cara metade
Se matar em quarto público
Sim,
Eu vi os homens e seus quipás
E vi as burcas da ignorância
Entregarem-se aos rituais
De dor e morte
Eu vi sobre o balcão das consonâncias
O sangue de todos os povos
Sim,
Eu sinto cada um de meus ossos
E sei que o amargo será doce
Quando as mentes sucumbirem
Aos algozes da última seara
Por isso vendi minha alma
Lá no início dos tempos
À luz da fantasia
Por isso,
Eu lavo as mãos
E sujo a cara
Retrato
Este é teu retrato telepático
Mentes gêmeas
Em cores gêmeas
O vermelho de teu sangue
A rolar na escuridão
Da noite de meu luto
Condenados
Foi ali,
Nas brumas
De uma noite fria
Que ela sentenciou
Nossas vidas
Com palavras doces
Um palmo - Lira 25
As Linhas
Niemeyericamente traçadas,
Uma curva longa
E duas retas buscando-se,
Num encontro ritmado,
Na ponta de uma
Meia Lua
Tudo, tudo tão calmo
E a tua boca a um palmo
As Luzes
Bandeiramente orvalhadas,
Duas pretitas leves
E um brilho paralisante,
Em talhos esmerados,
À ponta de uma
Teia nua
Tudo, tudo tão calmo
E os teus olhos a um palmo
Rebentação
O mar que hoje arrebenta em mim
Tem os teus olhos
E teu sorriso de espuma
Tem o sabor de brisas passadas
E de ventos futuros
De conchas recolhidas na areia
Num tempo de palavras mortas
Mareja-me novamente
Antes que desague-me.
Tapete
A nuvem em que miras teus passos
É apenas um velho tapete macio
Onde tantas vezes nos jogamos
Ingrata vida
Esta que nos leva para longe
Distâncias tamanhas
De inteiros pensamentos
E concretudes fugidias
Os fugazes e inúteis vácuos
Das sinapses cansadas
Das solidões perdidas
Olha o céu!
Ainda vês o azul?
Sempre acordo em franco desespero
Índole maldita em sonho velho
Nada de abstrato em pesadelo
Delírio sequioso em sono breve
Rastros de agonia em noites gêmeas
Ontem
Morrerei
Eternamente
Loteria
Cabelos brancos
Lentidão sem norte
Ziguezague no barranco
Um bilhete, rara sorte
Uma pedra, um cachorro,
O susto!
O grito mudo, o corte
O tempo – truste -
Forte
O sopro da vida
O tento
Suporte
Para a agonia,
No cais da alma,
Aporte
O prêmio,
Ilustre recorte,
Perdeu-se
Na relva,
No vento,
Na morte.
O Fio
A carne é leve
Quando
À carne toca
Elétrica
Ligeiro remoinho
Adentro
A carne leve
Quando
Toca a carne
Artérias
Adentro
O fio a conduzir-te
Adentro
A carne leve
À carne
Leve
Adentro
Elétrica Artéria
O fio a conduzir-te
O fio
A carne na carne
Leve
À
Uma Canção para a Lua
Surge a Lua,
Atrás das nuvens,
Seminua.
O seu corpo num corpete afogueado
Será sanha?
Será sonho?
Será sina?
Concubina do universo alardeado
Tu que vives em constante caravana
Outrora tão eterna e cultuada
Hoje, um contorno,
Mero adorno
À fauna urbana
Nos atice
Essa crendice,
Deusa vã, predestinada
Te desnuda,
Lua bela, Lua mansa
É nossa a dança
De te ver abandonada
Pelos olhos apressados,
Corriqueiros,
Dessa gente que tudo vê,
Mas não vê nada.
Lira 60 (Parte III) – Lira das despedidas
Despeço-me!
Despeço-me da velha vida,
De velhos amores,
Dos hábitos vulgares.
Diagramo no papel em branco
Duas páginas perenes.
Desenho o mapa com calma,
Disciplina recém-adquirida,
Dedico especial atenção aos
Detalhes mais
Discretos.
Deles é que surge o
Deleite e o
Defeito.
Dádiva nossa.
Divina. Por isso,
Declaro-me!
Declaro-me refém do amor,
Entrego-me,
Feliz.
Avôs
Estou te ouvindo
E as lágrimas teimosas
Insistem em conhecer meu queixo
Eu deixo.
Cheiro de sapato novo
Um filhote de cachorro
O vento nas folhas da árvore
Um sonho bom
O barulho do gás escapando da garrafa de refrigerante
A fila das formiguinhas carregando comidonas
As luzes vermelhas do congestionamento vistas de cima do viaduto
- O vovô rindo do Chaves
A chuva fria no asfalto quente
O banho quente no corpo frio
Um buquê de flores coloridas
O carro dos churros passando pela rua
Vá em paz, meu velho.
Vou ficar por aqui.
Não há mais tempo
Gabriela
Bate o vento
Em Gabriela
Espalhando suas flores amarelas
Como eu queria ser assim:
pés firmes no chão,
enquanto giram as manivelas
Abismo
Abisma-me, soberana,
Em tuas falas
Sofre-me em verbais sobressaltos
E eu, silente, esvaio-me,
Soturno, solerte
Singro-me, sangro-me
Por ser eu mesmo
Abismo
O Vestido
Teu vestido vermelho,
Curto,
Se funde e transparece,
À parede da autoescola.
Já tuas pernas brancas,
Luzidias,
Chocam o asfalto molhado
Pelo carpir da madrugada.
Balcão inóspito o que me escora,
Estou dentro,
Quase protegido dos feitiços
Do vestido vermelho,
Que desaparece,
Na medida em que surto.
O Lúdico
Ludearemos nossos corpos
À beira-marte
Assim, alvoroçados
Pelo mar de gente
Tu e teu cofre
Em suposto baluarte
Eu em palestra
Vil, liquidescente
Lunearemos nossos copos
A um pedido
Servis, anunciados
Pelo tempo já premente
Tu e teu chofre
N’amor-tecido
Eu à mesa
Não perco o sol poente
Estrelas
Olhar para o céu e ver estrelas
E tê-las
E vê-las
E vê-las como velas
Luzeiros truncados
Arminhos
Encaixilhados nas janelas
Olhar para o céu e ver estrelas
E vê-las
E tê-las
E tê-las como telas
Linhas trançadas
Pergaminhos
Segredos guardados em capelas
Olhar para o céu e ver estrelas
E tê-las
E vê-las
E tê-las como trelas
Mapas traçados
Caminhos
Para as nossas caravelas
Blasfêmea
Quantas vezes nos vimos, enamorados, só eu e tu,
Perdidos nos devaneios, nos rompantes
Quando bailavas, imponente,
Sobre as rugas do mar
Ou serena, embalavas meu sono
Quantas vezes te procurei
No firmamento de meus sonhos
Ou nos olhos amados
Ou nos seios da dor
Tu estás em meu peito,
Como um coração boêmio
Que não para de pulsar-te.
A ti, parceira de fiel intimidade, pergunto:
Quando, quando, quando, meu amor,
O homem deixou de te enxergar
No céu de nossa noite?
A Crise
Salve, Velho Irmão,
Saúde!
Tu pelas ruas, pedinte
Eu às calçadas, negante
Geneticamente,
Somos como tal qual,
Irmãos
Praticamente,
Somos como qual tal,
Opostos
Pareces tão livre
Na tua mendicância
Uma demência tardia
Livre,
Como disse,
Do lado de lá da cordilheira
Subo, agora,
A íngreme montanha,
Caro Irmão,
Eu chego lá!
O Acaso
Joguei a sorte
No inevitável buraco do acaso
Sorri a cada passarinho que voou:
O azul, o verde, o multicolorido
Não fiz mais planos
Fui displicente
Deixei o cargo de pessoa
Apenas para os competentes
E foquei, proativo,
Tão somente na sobrevivência
Daqui mesmo, de minha rede,
De onde posso ver o mar
Abraço
A tarde repousa a mão
Sobre as calmas águas da baía
O lustre humano,
Holofote vigoroso e delicado
Sincroniza o momento
E paralisa o tempo
De um abraço
Lira
Estrela cunhã da minha Lei
Ah, quando te vejo
Alvoroçar minha alvorada
O sol se pondo
E tu,
Serpente terçã,
Com jeito de algodão doce
Aos versos e inversos
Voz de seresta
Sorriso eterno
Lábios
Lábios
Lábios
Serena, manhã
Eu sinto o tremor
Das cinzas
E a luz do fim
Parece longe
Vejo tão bem o caminho
As curvas e os desvios
Mas, assim que acendo o isqueiro
Tudo, tudo volta ao normal
O Açougue de Mar Becker
Assim que vi as carnes expostas
No açougue clandestino de Mar Becker
Sabia que eram tuas
Só tu andas por aí
Com a alma sem invólucro
A nudez escancarada
E o olhar de fogo
Anunciando o nascimento das estrelas
Corpo, Alma e Urubus
Em algum lugar do mar sem fim
Tua alma flui
Ela flutua sobre a lâmina calma
De um pálido azul
Da areia fina, cor de nuvem
Teu corpo rijo e nu
Acompanha o caminhar
Da carne crua
Não mais se pertencem
Não mais se completam
Vivem agora em planos separados
Os urubus que se aproximam
Nem sabem o que é alma
Inóculo
Quando a chuva e o vento
Desrrumam lá pras bandas da praia
É que a inalegria
Se apruma premente nos peitos cansados
E não tem pele morena e cabelos cacheados
Que nos arranquem
O sorriso sincero e mareado
Afogado na nublagem do tempo.
Agora vem,
Abre teus olhos medonhos
E enverga tuas asas de morcego
Deixa eu cravar meus dentes afiados
E inocular angústia e dor
Na jugular do teu sossego
Crack
A lua quando despe a madrugada
É só
É forte
É calma
A fonte, estúpida morada
Polui
Maltrata
Estraga
A dor quando veste a namorada
É pó
É morte
É alma
A fronte, fervente e iluminada
Dilui
Retrata
E traga
Dogging
Ao parque
Irás apenas de sobretudo
Sobre nada
Num gesto rápido
Soltarei o botão
E teus peitos intumescidos
Saltarão para a noite
Os mamilos
Regidos pelo frio
Apontarão duros
Para as árvores
Onde o vento
Produz gemidos
De suave prazer
Os dedos em frenesi
Toques e sustos
As sombras em movimento
Os pelos
Os paus
As mãos
Os lábios
E as pernas
Receptivas
Escorre a seiva
Látex
A boca leve
A língua lenta
Murmúrios,
O grito preso
Explode
Os pássaros em pavor
Misturam suas asas
Bolinam-se no ar
E suas silhuetas
Encobrem
O céu cinza
Intramenino
Serena a tua voz
Perante a noite
Líquida donzela intermitente
Sobre o plano amadeirado
Mia se oferece
Lúdicas palavras
Sob o véu sideral ultracorpóreo
Intramenino sobranceiro
Anímico silêncio te anuncia
Nas luzes vermelhas que se param
O felino é só um brilho
A devorar tua tez morena
Rapina
Um gavião plana
A trinta metros do chão
Pombos arrulham
E refugiam-se sob as telhas
Das casas quase pobres
Periquitos precipitam-se em bando
Diante da visível ameaça
O gavião a tudo observa
Hoje não quer penas
No meio do mato do terreno baldio
Um filhote de gato
Respira desamparo
Na inútil desesperança do abandono
Saltita assustado no desconhecido
Rapinamente o gavião mergulha
O verde bruxuleia
Sucumbindo à força das asas
O pequeno gato agora está voando
Ainda se debate
Com as garras fincadas em seu frágil corpo
Tem uma última visão
Mas não entende
O céu que se aproxima
Pombos e periquitos
Podem voar livremente
Até amanhã.
A pipa
Do alto da laje,
O pobre menino se diverte.
Encara a surrada pipa
De vários dias,
Conduzida pelas mãos ágeis
E gestos vigorosos,
Adquiridos ao longo das batalhas.
É o menor dos contendores.
Hoje respeitado.
Entre os dedos corre a linha,
Áspera e cortante.
Alquimia de família.
O avô de barbas brancas,
Cadeira na laje,
Cigarro de palha
Pendendo na ponta dos lábios.
Ali, naquela pipa avoarada,
Ainda sente o fio de sua infância.
Plasma
Exaspera-me rever-te assim:
teus olhos de fogo
apontados para o nada.
O trem passando ao fundo,
vermelho.
E o rio que nos separa.
As janelas azuis e o abajur lilás
deste novo bar
são apenas o sereno cenário
em que nos marcamos.
Duas quadras à frente
vi as bandeiras e os cartazes.
Ouvi os gritos
incertos,
mas inclementes.
Num segundo plano,
vi a dor que surgia em tua boca.
Nem o líquido dourado em teu copo
disfarçava teu desconforto.
Era a paz que te perturbava.
Preferias o trem.
Preferias a passeata.
Preferias até o rio nauseabundo.
Ou a lua sobre nossas mentes silenciosas.
A tevê desligada
refletia as imagens da outra tevê,
que olhavas sem ver.
Plasma!
Em várias partes do mundo
pessoas morriam por causas justas,
ou injustas.
Aqui não.
Já estávamos todos mortos.
Lira do Fim da Tarde
Cai a chuva
Mórbida e lenta
Dos olhos marejados da Metrópole
Lágrimas gotejadas
Lânguidas
Morrendo frias
No concreto chão
Da indiferença
Nem a vibrante correria
Dos transeuntes
Nem o festival de guarda-chuvas negros
E sombrinhas coloridas
Nem as invernais indumentárias
E os cachecóis enrodilhados
Nem teu rosto nu
Nem tuas palmas longilíneas
Disfarçam
A turbidez da nossa
Trôpega humanidade
Somos produtos
Mercadorias acorrentadas
Em códigos de barra
Em números e senhas
Nas regras decretadas
Por nossos pares ímpares
Pelos laços indecifráveis
Da conveniência
E do conformismo
Há muito perdemos o prumo
Há muito nos entregamos
À resistência morta
Das aparências
Caímos em desuso
Como uma palavra
Perdida nas páginas amareladas
De um velho dicionário
A paisagem
Assim que chego
À janela me deparo
As quatro torres
Estão lá
No mesmo lugar
A cruz azul
Mais à esquerda
A fábrica de lâmpadas
Num outro plano
A escola
A creche
A invasão
O shopping
Ao lado
Das quatro torres
Um neon de motel
Que não para
A sonora rodovia
Cortando tudo
As copas
Separando os planos
No céu
As luzes passam
Estrelas fixam
Um meteoro
Os pássaros passam
Pessoas não
São pássaros
Na janela
Me Deparo
Comigo
Muito mais afeito a pássaro
Que pessoa
Poema para Inaê
Te amo como amo o mar
Em suas distâncias
Em suas lonjuras
Eu aqui
Ele lá
E um mundo de terras
Entre nós
Lembro de quando o mar nasceu
Gotas de água
Brotando dos pequenos olhos
Olhos d'água
E uma luz...
Ah, essa luz
Nos criou desmemórias
Nos plantou descobertas
A vida surgiu nesse mar
Fio de lágrimas
Depois, farto oceano
Ondulado
E a calma?
E a calma que ele nos traz?
A paz que nos transmite
Em seus olhos de luz
Te amo como amo o mar
Lembro de quando nasceste
Fio de água
Hoje,
Farto oceano
Encantado
Amor ao pé da página
Asteriscos e aspas se amavam.
Percorriam parágrafos
e textos inteiros,
completos.
As linhas iam e vinham,
as palavras vibravam,
as vírgulas se intrometiam,
os pontos,
carrascos,
sempre acabavam com tudo.
Não tinham chance
entre parênteses.
Nunca se viam.
Aguardavam ansiosamente
por furtivos e breves encontros
num ou noutro rodapé.
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