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  • ondovato9

O maior Círio de todos os tempos

Atualizado: 30 de ago. de 2022

Capítulo I

Nossa Senhora de Belém do Grão Pará, 22 de outubro de 1700, por volta das 19:00h.


O silêncio rumorejante da floresta noturna vinha sendo rasgado pelo rangido monótono dos engates de eixos e rodas da opulenta carruagem. O veículo, único de seu tipo na cidade, mesmo equipado com suspensão em lâminas de ferro, não era apropriado para os buracos, pedras e lama da estrada do Maranhão, em ponto já bem afastado do


aglomerado urbano, obrigando o condutor a manobras ricas de experiência e perícia, mas sem evitar plenamente os breques e solavancos, causando um certo desconforto em seus ocupantes. Tanto, que as duas silhuetas em seu interior agradeceram aos céus quando o cocheiro avisou ter avistado as fogueirinhas que identificavam seu destino.


O caminho era rota de mercadores, comerciantes, camponeses e militares, mas também contrabandistas e traficantes de escravos. Quase todos os dias, extensas caravanas transportando cargas valiosas, como açúcar, algodão ou tabaco, passavam pela estradinha em direção ao porto e à Casa de Haver o Peso, onde a metrópole abocanhava um gordo naco da colônia; no caminho inverso, os portugueses entravam pelo Brasil trazendo artigos da Europa e do Oriente. Essas grandes expedições dispunham de sua própria guarda e ainda assim preferiam a proteção de estalagens, comuns pelo itinerário, onde apeavam antes mesmo do sol se pôr completamente. E não era temor dos índios, que preferiam a abordagem diurna, mas dos salteadores, que tinham perfeito entendimento da vida e nenhuma piedade. Só os traficantes de negros africanos é que viajavam durante a noite. Eram conhecidos pela violência, e não hesitavam em usar os escravizados como escudos para salvar covardemente a própria pele. Por isso, aquela carruagem deflorando a escuridão era algo extraordinário, ou tratava-se de uma emergência ou de algo a ser feito longe das vistas do mundo. O indiozinho acocorado à beira do Igarapé Morucutu não podia imaginar que seria testemunha de um desses históricos encontros jamais registrados pela História.

Quando os dois cavalos marrons de crina preta e mancha branca na testa puderam descansar suas pernas esguias e musculosas no pátio da primeira hospedaria, o curumim apertou os olhos e viu uma mulher toda vestida de branco descer do veículo e se encaminhar para o interior da construção. Ela não demorou muito, e logo reapareceu para buscar outra mulher mais velha no coche, também em alvas roupas como alva é a garça. A primeira auxiliava a segunda em seu caminhar corpulento e pesado, tentando desviar das poças formadas na chuva do fim da tarde. A porta de frente da casa abriu bruscamente, revelando à luz de suas velas que as duas mulheres eram, na verdade, dois homens em trajes femininos, provocando um pouco de confusão na cabeça do menino tupinambá.


- Monsenhor! – O estalajadeiro irrompeu sorridente e um pouco embriagado. – A que devo tão honrada e santificada visita em hora já tão adiantada? Quer um quarto? Aceita um pouco de vinho? – Disse, exibindo a caneca feita em osso de anta manchada pelo néctar de Baco.

- Modere os gracejos e pare com as bajulações, bem sabes que ainda sou vigário-geral, mas tive uma ideia soprada em sonhos para agilizar o processo e transformar esta região. – Ele estava ansioso. – Ande!, ponha-me em um banco, pois precisamos conversar. – E foi avançando com a pança proeminente.


O homem rapidamente ajudou os representantes de Deus a vencer os degraus de entrada e acomodou o Vigário em larga banda de tronco. Assim que sentou, a autoridade eclesiástica apontou o dedo gordo para o proprietário.


- Tu, que me deves tantos favores, irás me ajudar. – E arregalou os olhos, deslumbrado. – Nós vamos fazer um milagre, Plácido.


Ora, Plácido era homem fiel, temente a Deus, crente na vida eterna. Apesar da distância, não perdia a missa do domingo, comumente celebrada pelo velho conhecido vigário-geral, Dom Diogo de Alencares, na capela de Santa Maria, a poucos metros de onde nasceu a cidade. A devoção era tamanha que, especialmente aos apertos financeiros, Plácido procurava o amigo em busca de conselhos e, quase sempre, depois de uma dose de conversa, algumas de vinho e muitas risadas, saía com um punhado de pitacos e outro de patacas da Santa Igreja, emprestadas a juros generosos. Para ela, diga-se.

Tais atividades especulativas impregnadas de usura não eram bem-vistas pelas cabeças da Cúria Romana, frequentemente viradas para o lado oposto de seus problemas. Assim, as relações inusuais daqueles dois homens progrediram de acordo com o tempo e a invisibilidade da maior floresta do planeta, tornando-os cúmplices e sócios. Pois, sem conseguir honrar seus compromissos, restou a Plácido dividir seu patrimônio com o calculista religioso, dono oculto de um terço da hospedaria, de duas vaquinhas e de metade das galinhas e ovos, além de praticamente todo o terreno.

Se um dia Plácido pôs os pés na ambição, hoje já limpara seus calçados, estava satisfeito com a vida. Chegando aos trinta, podia se considerar um felizardo, vivera mais que alguns de seus amigos de infância. Não fosse por uma flechada que levara ainda criança em uma brincadeira, e que lhe deixou um discreto manquejar na perna esquerda, jamais correra riscos. Herdou de seu pai o chão entre a estrada e o igarapé e, com muito trabalho e argúcia, fez dele seu ganha-pão, mas, depois de seu primeiro empréstimo clerical impagável, deixou de ansiar por grandes conquistas. Não caberá a Plácido dizer não, apenas aceitar os pensamentos estapafúrdios e gananciosos do fornido sacerdote.

- Ah, infeliz!, até hoje não me contaste onde consegues vinhos tão melhores que os das hostes do Santo Padre. – Disse, limpando a boca no braço de suas santas vestes. – Servi-me mais, ande!, que esse foi num gole só. – Enquanto a caneca era novamente preenchida, virou-se para o auxiliar. – Vá e faça o que mandei. Em menos de vinte minutos estarei pronto para irmos.


O menino de pele escura, coberto pelas sombras da noite, viu quando o primeiro homem de branco retirou da carruagem um objeto envolto em um pano. Ele e o cocheiro trocaram rápidas palavras e o homem de preto, munido de uma lanterna de azeite, seguiu à frente margeando o igarapé. Caminharam vários minutos até as pedras que vinham sendo escavadas pelas águas, desenrolaram a peça e a depositaram em um canto escondido e escuro, depois fizeram algum tipo de ritual e voltaram à hospedaria. O padre subalterno entrou no recinto justamente quando Plácido falava.


- Mas, e se ela for levada para a casa do governo, onde a guarda é reforçada? Como vamos fazer?

- Ah, caro Plácido, não foste meu único efebo. – Ele fechou a cara assim que viu o seu lacaio de batina entrar pela porta. – Colocaste lá?

- Sim, senhor Vigário, onde combinamos.

- Pronto, Plácido!, amanhã de manhã, bem cedo, leve minhas vaquinhas para um passeio. – O Monsenhor abriu um largo sorriso. – Vá e faça o milagre acontecer.


O curumim, tão ágil como um bicho da floresta, logo chegou ao amontoado pedregoso e escorregadio. Com muito cuidado foi se aproximando do objeto ali deixado, e mesmo com a parca luz da lua crescente, que agora se oferecia aos olhos de ver, pôde perceber que era uma imagem, a imagem de uma mulher segurando um bebê. Curioso, tocou em seu rosto pintado e sentiu que era também pedra. Foi quando os metais da carruagem guincharam na saída da estalagem. Num piscar de olhos, o indiozinho não estava mais lá. E num outro piscar, surgia à porta traseira da hospedaria.


- Ah, Pitiú – Plácido dizia que o menino cheirava a peixe –, que bom que apareceste. Em breve precisarei muito de tua ajuda.


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