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  • ondovato9

Como arruinar a sua vida em 12 ou 13 lições

Atualizado: 30 de ago. de 2022



“Creiam-me,

o menos mau é recordar;

ninguém se fie da felicidade presente;

há nela uma gota da baba de Caim.”

Brás Cubas




Prefácio


Antes que tu, incauto/a leitor/a, enverede pelos becos nebulosos deste livro, convém um mínimo esclarecimento sobre as condições que suscitaram sua feitura. Não se trata de forma alguma de um contrato usual de mercado, ou da junção de dois ou três autores, ou mesmo da infame “criação coletiva”, mas, sim, de uma espécie de orgia espirituosa em que um homem morto – que não está mais aqui, mas lá – incorporado em um outro homem, abstraído e ausente – ou seja, não está nem lá nem cá - conta sua história para um terceiro homem, completamente ciente de sua vivência – portanto, cá -, que escreve em um grosso caderno universitário garranchos ininteligíveis para a grande maioria dos mortais, como se estivesse ele mesmo recebendo as vozes do além. Parece-me imprescindível entender como se amalgamou tal composição.



Ao pôr-do-sol de um sábado, em outubro de 2018, um pouco antes da eleição do Anticristo, no Centro Espírita Trilheiros do Caminho, numa simpática periferia de São Paulo, ao fim dos trabalhos de psicografia, o médium Sigismundo Jatobá foi tomado de intenso transe. Ele já havia confortado mães e pais, filhos e irmãos, amigos e amantes usando do dom divino a ele devotado. Passara a tarde recebendo mensagens de entes desencarnados, repassando-as em rascunhos ou murmúrios aos familiares presentes.

Àquela hora o velho senhor já estaria alquebrado ante a contínua troca de energia entre o plano físico e o esotérico, por isso seus assistentes estranharam quando Sig – apelido carinhoso – danou-se a escrever, ermo de consciência e razão, pois que incorporação corriqueira permitia um fio de lucidez, mas aquela que tomara as mãos do pobre homem era diferente, era força poderosa, espírito de vasta influência, que só sossegou quando atirou o médium extasiado na mesa sobre as oito folhas desembestadamente escritas em forma de carta para si mesmo.

A cena provocou comoção generalizada, uns começaram a gritar em prece, outros só mexiam os lábios; em comum, as mãos espalmadas à frente como quem verifica se está chovendo. Os funcionários da casa correram para socorrer o patriarca, que regurgitava uma baba branca e espumosa em cima dos papéis, logo resgatados e resguardados. Ele ainda levou alguns minutos para se restabelecer, mas assim que se pôs de pé, amparado por um irmão do Centro e por uma xícara de chá de hibisco batizado com um dedinho de pinga, foi ao sofá para ler as malfadadas linhas.

Não vale aqui reproduzir mísero vocábulo da missiva, dado o conteúdo grosseiro e agressivo, mas explicar que se tratava de um texto desaforado, exigindo do mestre a ditadura de um livro, a crônica de sua última encarnação. Parece que o usurpador de corpos prometera a seu mentor fazer algo para ajudar as pessoas, tendo como intuito marcar uns pontinhos no caminho da evolução. Sendo sua vida um amontoado de maus exemplos, concupiscências e desatinos, julgou que a exposição em obra escrevinhada seria bom lume pra não seguir percurso igual. Considerava aquilo praticamente um caso de utilidade pública: aprender com os erros e as experiências do outro.

Ao final, como se não bastasse, a alma penada, montada na petulância e no descaramento, ameaçou sequestrar o médium, agora que compreendera e dominara o ir e vir entre o fluido e a matéria. O sábio, que trazia nas costas décadas e décadas de estudos e mediunidade, não se deixou abater pelo espírito de pouca soma, rejeitando incontinenti a proposta. Durante a semana em suas orações, e mesmo nos trabalhos doutrinários e educativos, procurou orientar a perdida entidade com proposições edificantes, conselhos para um vasto desenvolvimento e votos de paz e progresso. Confiou que essa estratégia podia surtir efeito sem a necessidade de outro embate possessivo. No começo da sessão de psicografia do sábado seguinte eles sofreram as consequências.

Jatobá, ainda no período meditativo, antes de entrar nas tarefas, num arroubo, levantou-se da mesa e seguiu para o meio das cadeiras do salão – onde nunca ia -, causando um certo estupor entre os servidores, e com trejeitos assaz maledicentes, fez piadas e dirigiu gracejos aos frequentadores até parar ao lado de uma senhora e cutucá-la acintosamente.


- Você que é a esposa do Manoel, não é?


A mulher olhou nos olhos dele em euforia, aguardando uma mensagem reconfortante de afeto de seu marido amado, mas o espírito dentro da casca do velho Sig não era de dar boas notícias.


– Lembra do seu anel de noivado que sumiu? Lembra de vocês dois conversando na cama à noite cheios de suspeitas sobre quem seria o ladrão? – Ela balançou a cabeça assentindo. – É ele!

- O quê??? – A mulher ergueu-se arrastando a cadeira.

- E tem mais - ele falou enfiando o indicador no ombro da moça, devolvendo-lhe ao assento -: ele penhorou na Caixa da Líbero Badaró, tá lá ainda. E sabe pra quê? – O tratante falava soltando farpas pontiagudas. - Pra passar um fim de semana de sonho em um motel da rodovia com a piranha da tua irmã, a Carlota! Ele disse que foi pra Catanduva e ela que ia pra Paranapiacaba? Lembra? Nem foi tão ruim, não é? Foi quando você comeu o garoto do mercadinho. Ele já tinha dezoito? – O bicho falou com um sarcasmo de almanaque, coisa de fina categoria.


A mulher, boquiaberta e tremelicante, atirou-se em seu devido lugar, recorrendo a preces lamuriosas para afastar o ser de seu encalço e consolar seu coração quebrado. Um homem na fileira de trás riu da situação.


- Se você correr, ainda pega a tua esposa na salinha do pastor cumprindo penitência. Ela tá ajoelhada fazendo sim com a cabeça. – O possessor simulou o movimento para o corno, que saiu em disparada, proferindo impropérios aos pentecostais e aos espíritas.


Agora, a comoção era outra, não para salvar o arcabouço do médium, mas sua reputação. O salão inteiro estava em paralisia, à exceção de meia dúzia saindo de fininho no mais suspeito silêncio. Antes que alguém versado nos preceitos kardecistas tentasse se aproximar, o próprio espírito malfazejo abriu negociação.


- Agora, que eu tenho o poder - ele vociferou, fazendo o pobre Sig cambalear –, que eu vejo os podres de todo mundo por aqui, que eu sei da moça que frequenta o cinema pornô da Ipiranga e do chefe de seção do fórum que aceita propina pra mostrar processos em sigilo - e muito, muito mais -, eu vou pôr as cartas na mesa, sem trocadilho. – Ele apontou e girou 360º, rindo da própria pilhéria. – Meu nome é Cândido!, Francisco Cândido, e eu só quero escrever meu livro.


Foi quando o velho corpo vivo voltou à bancada, pegou um pincel atômico e escreveu, maculando a pureza da parede branca: “Eu aceito!”. Ele, então, limitou-se a sorrir e se retirar vitorioso, largando o infeliz Jatobá desfalecido em sua cadeira.

Nem tudo que apruma é prumo, às vezes é só um desvio de rota.

Nos dias que se seguiram, o malévolo espectro e o médium chegaram a um acordo. Sig, refém desesperado, só pediu para não escrever palavras tão venenosas ou descrever as passagens vis, e sugeriu a contratação de um profissional para o serviço. Ainda naquele dia recebi uma mensagem de seu secretário.

Uma semana depois, durante sete horas e meia de incorporação contínua, este livro foi ditado. O resultado está nas páginas adiante, que não recomendo às pessoas de almas sensíveis.



Ondovato,

São Paulo, 3 de janeiro de 2019.





Capítulo I

Seja um filho da puta


Perdoa-me pelo chiste da expressão acima, mas cabe a mim perscrutar o que se passa em ti, leitor/a, pois aqui, como bem sabes, discorre um morto. O que tens para te contentar é a narrativa de um espírito incorporado em um médium que, não sei sob que técnica escusa, com os olhos brancos semicerrados, fala - com uma voz bem parecida com a que tive em vida - para um escritor, certamente medíocre, que apenas grava meu sacro monólogo e faz algumas anotações. Deve, ao gosto de sua vontade, retirar e acrescentar pedaços de minhas memórias, como um deus incompleto da psique humana. Agora mesmo, enquanto verbalizo isso, noto pelas córneas do velho suas feições incrédulas e odientas, e recebo o olhar dardejante direcionado ao meu intermediário. Sempre considerei essa prática mediúnica com um pé na vigarice e outro no ilusionismo, mas, vá lá!, foi o que me restou.

Talvez, por ser um tanto insolente e arrogante, ouse me comparar a Brás Cubas em suas memórias póstumas, pois póstumas também são as minhas, como somos ambos defuntos autores, por mais que entre mim e o papel hajam duas pontes de carne e osso. Para mim é patente a parecença entre nossas personalidades, calcadas numa impertinente mesquinhez e no desprezo aos mesmos de espécie. Éramos, também, como poderás ver no correr destas páginas, seres de duvidoso caráter e com certo desdém pela quimera da existência, além de cáusticos e pessimistas. Claro que, aqui, só encontrarás a minha história, a de Cubas está na obra que inaugurou o Realismo no Brasil. Leia ou releia, indico.

Cedi a esse presunçoso paralelo simplesmente porque me vi agrilhoado à mesma questão da personagem centenária: cabia a mim escolher por onde iria o começo; se pelo fim, já à capa revelado, ou pelo princípio, quando a luz nos deflora a vista pela primeira vez.

Decerto, sem muito refletir, logo optei por não abrir este romance por minha morte, pois isso acabaria por deslindar uma parte de seu tempero e tiraria de ti um bom naco de interesse, porque é inerente ao ser humano a curiosidade mórbida. Quererás - assim assevero - descobrir como parti desta para melhor.

É óbvio que me arrisco ao limbo literário ao utilizar tal estratégia, afinal, não é qualquer um que se lança à leitura de um livro sabendo que o protagonista vai morrer no final. Meu colega machadiano demonstrou em fartura que o melhor talvez seja morrer no início, e assim viver eternamente. Mas, verás a seguir que não sou do tipo que gosta de morrer, nem que mereça de ti alguma porção de empatia. Se venho arreganhar minhas intimidades e escancarar minha fraca conduta não é por compaixão ou generosidade, nem porque desejo aconselhar-te sobre os caminhos soturnos da vida, mas porque meu orgulho colossal não permitiu despregar-me do campo da matéria, e porque tendo a reputar necessária tal manifestação por mera vaidade.

Destarte, nem princípio nem fim, decidi começar bem antes do começo.

Darei, portanto, algumas pinceladas sobre meu avô e meia dúzia de respingos sobre meu pai. Seria muito injusto, além de deslavada mentira, ocultar a relevância que ambos tiveram nas escolhas que fiz, mas, qualquer coisa antes disso, pelo menos para mim, transita pela estrada da insignificância.

Ora, tenho consciência de que o que molda a pessoa é a carga hereditária, o acúmulo de conhecimento e o ambiente em que vive. Podemos, ainda que em menor escala, segundo meu peculiar ponto de vista, incluir entre os ingredientes formadores da personalidade humana as muitas relações travadas ao longo de cada caminho. E quando falo relações – ou quando digo falo – sempre me vem à mente a triste sina de minha estirpe, uma suposta maldição que atravessa séculos e vem causando nos últimos tempos uma certa angústia em seus padecentes, não pelo que é em si, mas pelo que faz em nós. Tomei ciência muito cedo, mas o discernimento me veio quando já vivia meus dezesseis anos. Para que possas compreender o meu suplício é preciso conhecer o agouro, a praga que nos acompanha pelo menos desde o século XIX, e que faz dos homens de nossa linhagem entes execráveis, seres de moral descartável, e inflexíveis na arte de maltratar o próximo: todos os pais de nossa genealogia são filhos diretos e inequívocos de notórias putas.

Ressalto direto e inequívoco porque filho de puta é aquele feito em pleno exercício da profissão, sob vínculo monetário. E que fique claro que filho de puta não é o mesmo que filho da puta, mas que em nossa espiral genética uma coisa não existe sem a outra.

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