Quando o primeiro golpe de enxada feriu a terra, ele sentiu a desnatureza apossar-se de suas mãos, a inevitabilidade a dirigir-lhe as ações. Repetiu o gesto rude e violento dezenas de vezes, sem perceber que era de tudo inútil. O chão duro, desnudo após arrancar-lhe a pele úmida, não se desfazia sob as pancadas ruidosas. A lâmina enferrujada deixava somente talhos no solo vermelho, apesar da chuva que caíra até o meio da tarde. A copa da imensa tipuana filtrava a água celestina, deixando apenas gotas pesadas e esparsas completarem o ciclo da gravidade. Mesmo agora, mais de uma hora depois que a tempestade fenecera, ainda sentia o gotejar em seu chapéu de couro. A gigantesca árvore e suas flores amarelas também chorava.
Não tendo como refugar de seu intento, o velho homem fez daquele um grave objetivo. Muniu-se de todas as ferramentas que dispunha, com um balde umedecia a terra para tornar-lhe mais suscetível, e com pá, enxada e terçado seguia adiante em sua tarefa. Levou mais de duas horas para vencer o chão e as densas raízes que o rasgavam. O sol do fim da tarde se juntava ao esforço prolongado, provocando o suor lamacento, que se acumulava em seu peito grisalho. Os músculos, pouco afeitos ao trabalho pesado, agora eram estrias dolorosas a percorrer-lhe o corpo, cansado. Tirou o chapéu e enxugou a testa. À vista marejada compreendia a cadela branca e marrom a espreitar-lhe os movimentos. Aproximou-se e afagou-a demoradamente, enquanto revolvia em seus pensamentos os acontecidos dos últimos dias.
A irmã da desacalentada cachorra, batizada de Nuvem por seus aéreos devaneios, aparecera doente. Uma ferida aberta na barriga, invisível sob seus espessos pelos brancos e pretos, recebera a visita de indesejáveis insetos, cujas larvas instituíram próspera colônia. Sem recursos e remédios, Antero Melodia, assim conhecido por ser meramente um cantador, aconchegou o animal enfermo em um carrinho de mão, transportando-o por pesados quilômetros, até chegar à casa do Dr. Esmeraldo, médico de bicho, mas também um emérito bebericador, sempre presente nas festas onde Antero dedilhava seu violão e cantava suas modinhas sertanejas. O doutor, sentado na varanda de sua modesta casa, tomando uns golinhos de cachaça “para abrir o apetite”, levantou-se solícito para socorrer primeiro o homem, que vinha em ofegantes passos.
O idoso veterinário já não clinicava havia alguns anos. Vivia da aposentadoria e dos presentes que recebia da população dos arredores por cuidar de seus bichos. Depois de acomodar o cantador e de pingar em um copinho saboroso licor de cacau “para recuperar as forças”, olhou a ferida da cadela e despreocupou-se. Chamou a filha, Vespertina, nascida quando já não se esperava, e pediu para que cuidasse do bicho. A menina, cuja mãe morrera no parto, ainda não chegada aos vinte anos, estudava na cidade os ofícios do pai, e trazia no rosto um amor alumiado pelos seres de quatro patas. Enquanto a moça enchia Nuvem de carinho e a levava para dentro, os dois, doutor e cantador, trocaram reminiscências liquidescentes até a hora do almoço, que foi empurrado para a tarde por conta dos procedimentos da jovem enfermeira.
Por volta da uma e meia, quando sentaram-se para o almoço, a bichinha parecia outra, apesar da faixa que lhe apertava a barriga. Ativa como o cão, que é de suas procedências, brincava, abanava o rabo e, sobretudo, farejava altaneira os eflúvios convidativos que sobejavam da mesa. Pedinte, ganhou tantas partes e ossos que adormeceu, farta e satisfeita, com sua acompridada língua sempre para fora. Após a abundante refeição, o doutor voltou à varanda e, para “ajudar na digestão”, serviu-se de generosa dose de aguardente. Ofereceu ao visitante, que educadamente recusou. Vespertina, dessa vez acompanhou os homens e fez suas recomendações ao cantador. Despejou em suas mãos três diferentes remédios, com os devidos horários anotados num papel. “Só não a deixe fora de casa, até refazer o curativo amanhã”.
Depois de prometer cantar até de manhã no aniversário do doutor, dali a duas semanas, para pagar as generosidades médicas, Antero acordou Nuvem e seguiram seu rumo. A cachorra estava tão renovada, que só pediu pelo transporte já perto de casa, talvez para fazer inveja à sua irmã, Terra, assim batizada por contraste de competências. As duas brincaram rapidamente, mas como a noite se aproximava, o cantador seguiu as orientações de Vespertina e a abrigou dentro de casa, no quarto da filha, para não deixá-la solta no vasto mundo sem cercas que descerceavam sua humilde morada.
Foi no veio da madrugada que tudo desaconteceu. Um uivo lamentoso rasgou a escuridão do tempo e sobressaltou Antero e sua mulher, Maria. Os dois, descarnados do sono, levantaram em pavorosa nervosidade. Ao abrir a janela, o cantador viu a fantasmagórica aparição do vulto da Terra surrupiar a calmaria do resto do mundo, trazendo os cães de todas as vizinhanças para uma sinfonia de fatídico desassossego. Nesse momento, a filha, Serena, entrou no quarto em lagrimosa revelação: “pai, a Nuvem morreu”. Um desabisonho torpor tomou conta dos três. Do céu, todas as nuvens choraram, e choveu doze horas seguidas.
Enquanto choveu, a Terra chorou. Lastimosos ganidos e uivos permearam incessantes aquelas horas. Vez por outra, algum cachorro a acompanhava, reverente. No interior da casa, a pequena família velava o pobre animal, envolvido em indigente cobertor. Antero providenciara uma caixa e ali depositara o corpo inerte e rígido. Aguardava ansioso pelo fim da chuva para iniciar o processo do inesperado funeral. Já pelas duas da tarde, um fio de sol atravessou as folhagens e marcou o local onde cavaria a sepultura. O cantador mastigou uns pedaços de pão e saiu para o tempo.
Durante as duas horas seguintes, Antero viu-se enluarar em pleno dia. Ele, que sempre desacreditou-se um ser divino, serpenteou seus pensamentos sobre os estranhos sinais das últimas horas. Perguntou-se endiabrado sobre a chuva e a lágrima, entregou-se a abstrações sobre os bichos, seus sentimentos e sua insuspeita inteligência. Tropeçou em sua mente cheia de ruralidades algumas considerações sobre a cidade grande, onde poucas vezes tinha ido. Agora, a cidade se achegava. Aos poucos vinha comendo fazendas e sítios, e se aproximava em corrente perigo. Desconfiou certeiramente que gentilezas como a do doutor Esmeraldo e Vespertina eram raras, que animais de estimação não eram como membros da família, e que, se Deus existisse, vivia ali, entre as árvores e os bichos. Viu seus dedos esconderem-se nos pelos brancos e marrons da Terra. Estavam tristes. Era a hora da despedida. Deixou a brisa embalar suas certezas duvidosas.
Entrou na casa e de lá saiu com a morte em seu colo. A vida vinha a seus pés, cabisbaixa e lenta, num choro miúdo. Depositou a caixa na cova rasa. A Terra entrou em si mesma e deitou ao lado da irmã, aconchegada. Antero a deixou ali e foi queimar seu cigarro de palha. Da janela, Serena e Maria derramavam lágrimas copiosas.
Os pássaros iniciavam sua cantoria, louvando ao Tempo crepusculento. Tempo insensato e incerto, corrediço e leviano como as personalidades. Sem ousar sinais, Terra, depois de duas horas condolentes, ergueu-se do sepulcro e caminhou resignada em direção à casa, onde foi recebida com carinhos e mimos. O cantador, desaninhou-se de suas enevoadas ideias e rumou para a beira da cova. A chuva recomeçara a cair, dessa vez leve e conformada. Ele pegou a pá e deu uma última olhada para aquele chão. Deixou às lágrimas o trabalho da mistura às águas chuvosas, e num gesto intuitivo começou a enterrar sua alma dura e bolorenta.
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