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Ford Bigode

ondovato9

Ele entrou devagar, abriu a porta e esperou o olhar se acostumar à penumbra. Um fio de luz, vindo da parca janela encoberta pela pesada cortina de mantas velhas, tramava o reto caminho até a temerária parede de tábuas carcomidas. Caminhou em direção à janela, levantando pequenas explosões de poeira. Com gestos lentos afastou as duas partes de pano e deixou o sol tímido fazer sua obrigação. Na rua, muito transformada pela ação do progresso, podia ver o amarelo das flores depositadas pelo vento de outubro. Não deixaria de notar o belo espetáculo: o vívido sobre o preto do asfalto e o cinza das calçadas.

A claridade não chegou a inundar o ambiente, mas deslindou a rústica penteadeira largada num canto. Aproximou-se, e viu no espelho manchado pelas nódoas do tempo seus olhos inchados por tantos chorares. Não aquele espalhafatoso e público, nem o íntimo, guardado nos recônditos de um cômodo, na solidão de um quarto, mas sim o choro interno, um chorar para dentro, desses que não nos permitem dormir, e que acomodam as dores mais inertes, as dores menos sublimes.

Virou o rosto e amparou-se no velocípede de quadro vermelho e assento preto, que um dia lhe fez criança. Poucas lembranças de menino, afoito e fugidio, como um sonho que se desfaz na ligeireza do despertar. Um velho gritando em seu encalço, e o trinado dos passarinhos viventes nas mesmas árvores que coloriam o chão do futuro. Na aspereza de seu rude coração, vislumbrou migalhas de felicidade, que teimavam em tripudiar sobre seu espírito mortificado. Parecia impossível, mas um dia, por breves momentos, fora feliz. A barba branca de seu avô a persegui-lo pelas passagens de terra batida, enquanto gargalhava, sapeca, moleque. Não era seu neto sanguíneo, mas assim tornara-se pelos prazeres das leis não escritas. Era o máximo que suas recordações puderam proporcionar. Ele morrera, atropelado por uma mísera bicicleta. E sua vida acabou. Procurou não lembrar, mas a memória é devastadora, e afia as garras nas costas disformes da mente.

Olhou em volta, em busca de uma lâmpada, uma luz. Localizou-a um pouco acima de sua cabeça, exatamente onde a imaginava. Calculou o local do interruptor e caminhou em sua direção. Cinco passos. Nada aconteceu. Desceu e foi até a cozinha, desatarraxou a lâmpada principal e voltou a subir. Trocou os artefatos, um antigo e incandescente, e outro moderno e fluorescente. Numa fração de segundos tudo se iluminou. O sótão tornou-se novamente o palco de suas incontidas mortes, uma após a outra, dezenas, centenas talvez. Não havia como mudar isto. Tudo estava lá.

Caiu em cima do baú, em mais um chorar. Ajoelhado, suas lágrimas tornavam em lama a poeira depositada sobre o chão. O passado longínquo, e sempre algoz, nunca fora tão presente. Sentiu as dores de um tempo jamais esquecido, sorrateiro, marginal que espreita sua vítima na antemão da história. Sujeito partido, quebrantado em mil pedacinhos, num torvelinho de emoções petrificado, sumidouro de sentimentos bons. Morrera mais uma vez, ilustre coadjuvante de um filme sem mortes.

Lá no fundo, a cama de molas, tantas vezes seu cárcere, tantas vezes seu túmulo. O mesmo colchão listrado. Listras que via de frente, sob o peso de seu falso pai, sob a omissão de sua inútil mãe. Aquelas paredes foram a caixa inviolável de seus gritos, de suas incontáveis e doloridas mortes. Perene prisioneiro de seu choro agoniado, pulou sobre o colchão e destroçou-o. Tão velho era o colchão, tão vivas suas memórias. Em poucos minutos uma nuvem sombria de algodão tomou conta daquele mundo restrito e pútrido. Espalhou todas as suas mortes pelo sótão, num ritual de expurgo e solidão.

Enxugou suas lágrimas na manga da camisa italiana. Tão cara, tão útil. Tudo deveria ser útil, pelo menos. Saltou dos restos de seus funerais, achou uma cadeirinha de palhas rasgadas, puxou-a e sentou-se. Não era de seu tempo. Num largo gesto abarcou o antigo baú, outrora depositário de roupas de cama e cobertores para um frio inóspito. Delicadamente destravou seus dois fechos e abriu-o. Um grupo de doze borboletas rubro-negras ganhou a liberdade e esvoaçou pelo sótão, buscando espaços vazios nas paredes. Em seguida vieram os gafanhotos, muitos. Por fim, as lagartixas verdes, umas vinte. Seu espanto foi tanto que não viu as fadas, uma para cada borboleta. Todos presos havia muito tempo, durante muitos sonhos. Sorriu com vontade. Uma criança dentro do baú.

Aos poucos, foi retirando as roupas que estavam submissas na velha arca. Formou pilhas grandes, até encontrar o que buscava sem saber. Seus velhos cadernos, livros e diários. Os uniformes de suas primeiras escolas, um chapéu de marinheiro e uma doce fantasia de arlequim. Em algum momento, fora feliz. Um velho álbum de fotografias, sem fotos suas. Um trenzinho de madeira, um boneco de lata e uma lata de biscoitos com quatro cartas para um papai noel que nunca descera pela chaminé, talvez porque não houvesse chaminé. Num canto, lá estava ele, seu brinquedo favorito. Dele não se esquecera: a miniatura de um Ford Bigode, presente de seu avô, que contava histórias sobre Henry Ford e Thomas Edison, e sobre as grandes invenções da humanidade, a lenda da descoberta do daguerreótipo, o assombro de D. Pedro II diante do telefone, e da primeira vez que ele fora ao cinema. Pegou o pequeno carro e aproximou-o dos olhos, estava intacto, novo, como o deixara quando fugiu aos nove anos. Uma grande onda de luz invadiu o recinto. As nuvens deram uma trégua ao sol primaveril e tudo foi banhado de cor.

Voltou à janela e viu as crianças brincando nas redondezas. Seus olhos novos se apertaram e um fio de lágrima lambeu-lhe a face. Numa agilidade desconhecida, desceu correndo as escadas de dois em dois degraus, rapidamente chegou à rua e chamou os meninos e meninas. Cheio de orgulho, mostrou-lhes sua linda miniatura cinquentenária. Em minutos, estavam todos sentados com seus carrinhos, circulando em cidades de fantasia. Vruuumm, vraaammm, riiiinch: duas Ferrari, uma Lamborghini, BMW, Mercedes, Pajero, um jipe militar, uma limusine e, claro, o Ford Bigode. A alegria era tanta entre as nove crianças que alguns pais se aproximaram, formando um pequeno tumulto, como um desfile, uma comemoração.

Entre os gritos exaltados e os comentários de surpresa, ele olhou para o céu e sorriu sinceramente pela primeira vez em anos. Quando baixou a vista, pôde ver, através de seu choro apaziguado, as fadas e as borboletas colorindo o amarelo das calçadas.

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