Quando me durmo acordo sempre num branco. Um branco inútil, lasso, solitário. A solidão levada à última forma, de átomos e lenços, de lustres e louças, de sacos e estopas, de lembranças brancas, de sonhos que de tão brancos beiram o azul, que um dia foi do céu e do sonho, hoje o sonho é branco, como tudo. Pelas persianas que já vi, entra uma claridade lenta e soberba, mas que dança sobre os móveis poucos, de um vento sem sentido e sem origem, pois o desconheço. Todos desconhecem, só eu o sinto.
É tudo gelo quando saio. A neve cobre as ruas e os automóveis e as casas e as árvores. É difícil andar, cada vez mais difícil, como se eu voltasse à primeira infância, os primeiros passos. Mas é tudo culpa do branco. Não sei andar sobre a neve. Alguém sabe? Não aqui nesta cidade onde nunca nevou. Só agora, fruto dos novos tempos de desajustes e desalinhos. O homem é branco, o tempo é branco, a vida é branca.
Lá estão as mulheres com quem dormi. Inútil redizer: todas brancas. Faces brancas, seios brancos, dentes brancos. Só o sexo é vermelho, onde as vejo. Lá estão elas, desfilando suas belezas brancas, seus dotes, suas rendas, pela neve em festa, pelas vielas tantas, brancas. A noite fortalece o deslumbramento, com sua chuva perene, de neve, de neve a noite é branca, nos humores e nos amores, como num tempo passado pude ver. Hoje o presente é todo branco, circunscrito, circunspecto, atordoado pelo lume lunar, aspergindo seus raios luzidios pelo branco de meu pensamento em branco.
Envolto em meus lençóis brancos, não tenho forças. Sofro na cama arredia as mesuras e mazelas de meus olhos. Não existe nada além do branco, para onde olho. Meus nervos entumescidos distendem-se mas não contraem-se. A multidão agora me vê nos meus nervos brancos, como a noite lá fora, ou será dia? É dia, pois as persianas verticais dançam pelo vento que só eu sinto mas ninguém vê, trazendo a luz de um sol, de um dia branco. É quase hora.
À minha frente um aparelho de tevê exibe um branco sem sentido. Tento encontrar o controle remoto com minhas mãos fugidias. É certo que aquela hora vai chegar e cegar. Pouco tenho a oferecer a meus pares, minhas pastas foram guardadas em cantos, em cômodas, em quasares. Ainda rimo. Meus dentes brancos exibem-se subalternos enquanto o gelo cai lá fora. Tenho saudade do som dos pedregulhos. Como se chamam mesmo? Ganidos? Granhidos? Granizos. Tenho saudade do som. O som do sexo vermelho, dos pássaros verdes e das batatas amarelas. Quando? O tempo é branco.
Tudo é branco quando acordo, se me durmo.
O céu é de um monótono branco. Serão nuvens? Nuvens eternas e compactas. Não há chão onde me tenho, só céu. Não choro já faz tempo, um tempo branco. As velas de labaredas intempestivas ainda me assombram e as luzes que me afogam vêm das persianas que um dia vi e de um vento que só eu sinto. A hora vai chegar, o minuto, o segundo, e me cegar. Saudade do som, do som das nuvens em desnorteio.
Quando me durmo às vezes sonho. E eu vou para o mundo, um mundo agreste, rígido, intangível, intocável. Apesar do sol que dança, sinto frio. Deve ser a neve. Pouco me durmo no mundo agreste, de gelo. Tenho saudade do som dos pedregulhos e das nuvens. E dos coelhos. Lembram deles? Eles chegavam pulando entre os arbustos em dias de sol e céu. Lembram? Não. Só eu lembro quando me durmo. Era um tempo bom, havia flores e jogos. Futebol. Houve um tempo de futebol. Jogávamos e torcíamos feito selvagens. Éramos selvagens. Hoje somos brancos em meus lençóis.
Em algum lugar um sino toca. Arrebenta meus ouvidos vivos. É a igreja anunciando um casamento branco. O meu casamento, o que não houve. Lembro do ônibus sobre a calçada, e do sangue sobre os escombros. A onda varreu meus pensamentos e vontades, e o tempo se esfacelou. Agora o tempo é branco. Um deus qualquer e ousado sorri seus dentes brancos e me enoja. Minhas entranhas revolvem-se diante das paredes brancas de minha morta vida. Já não tenho idade. Os rostos passeiam enevoados e nem posso tocá-los. Sou o traste no baú do sótão. Sempre gostei desta palavra: sótão. Soturna, só. Um baú, com lembranças mortas e traças vivas, a mastigarem meus vultos, nos desvãos perdidos do eterno. Só o sexo e o sangue são vermelhos.
Em algum lugar, caminho. Não há sombras nem sustos num mundo branco. As alamedas e suas flores brancas não têm fim. Volto meu corpo embrutecido e também não vejo começo. Um traste no baú, sem fim nem começo, nas alamedas lindas de meus sonhos. Quero uma praia, um céu azul, uma cerveja dourada e biquínis coloridos, mas tudo o que tenho são as dunas, e um mar de sal. Espero pelo momento em que serei tocado. Enfim.
Ouço a porta se abrindo, e sinto um leve perfume doce. Seus passos são firmes e sua voz ressoa em meus ouvidos vivos, “Bom dia”. É mera formalidade, uma burocracia desnecessária. Tento, em vão, enxergá-la. Meus olhos não seguem meus instintos. Minhas mãos não obedecem a meus desejos. Só sei que me toca quando meus olhos voltam-se para o chão, e me cego. É quando ela vira o traste que sou e começa a remexer minhas escaras, que eu não sinto. Só sinto o vento. Meu único mistério, meu último enigma.
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