Uns quatro anos atrás, ousei escrever sobre um espetáculo teatral. A peça havia me encantado e decidira colocar no papel as boas marcas que ela me deixara na alma. Sim, para quem não sabe, a Arte tem essa prerrogativa: a de causar cicatrizes. E não me venham falar que cicatrizes derivam da dor ou de sensações ruins, tenho cá umas duas ou três que me foram muito aprazíveis, e das quais falo em despudor exagerado. Talvez seja só uma liberdade poética, mas, vá lá, o que seria de nós sem um pouco de Liberdade e Poesia, não é mesmo?
Ora, e já estou aqui em devaneios e desvios, pegando as picadas da mata e seguindo para onde a vida me levar. Nem cheguei a terminar uma história e muito menos a começar a outra, a que deu sinos a este texto, e num piscar de olhos me ponho a burlar o foco e os incentivos. A lira das boas intenções nos aconselha a manter a disciplina e o rumo, para que o objetivo seja cumprido a contento, sem prejuízo a terceiros, a não ser que seja alguém desse governo que está aí. E eis que prejuízo vem a ser o gancho perfeito para voltarmos aos trilhos, pois no fim do raciocínio verás que lucro e prejuízo têm uma linha pífia a separá-los.
Falava sobre a intenção em expor publicamente meus sentimentos sobre uma peça, ainda lembras? Assim o fiz. E, para minha surpresa, um amigo veio me questionar sobre meus conhecimentos de Teatro e se me considerava capacitado para fazer uma crítica teatral. Tentei explicar-lhe que não se tratava de crítica, mas de uma opinião pessoal, a palavra de um espectador diante do que considerou admirável, tão somente a voz de um representante da plateia, a plebe da atividade artística. Ele, professor de Teatro, ator, diretor, e mais uma penca funções na arte de encenar, tratou de desancar meu humilde ponto de vista e, entre outras coisas, disse que minha “crítica” carecia de detalhes e fundamentos, típica de alguém que não conhecia o ofício. Voltei a argumentar que não falava um profissional do meio, mas alguém que comprara um ingresso e que, ali, de sua poltrona nem tão confortável, passara uma hora e meia em puro deleite. Não adiantou, o infeliz me baniu de sua vida. Meses depois, vim a saber que ele participara do mesmo edital que contemplara o espetáculo em questão, sem sucesso, é claro. O não, para ele, foi mero prejuízo pecuniário. Ver um amigo falar bem de uma das dramaturgias vencedoras foi um prejuízo egóico. Todo esse preâmbulo é apenas para esclarecer que aqui fala um observador. Não mais que isso. Repito: aqui fala a plateia.
Nesse contexto de doença e quarentena, de ignorância governamental, de obscuridade de sentimentos e de negação da Ciência, da Educação e da Cultura, o belo é sempre desejado e bem recebido. Enquanto, nas redes sociais, plataformas e canais, pipocam programas, debates, palestras, gente de todos os níveis – e seu leque de categorias – discutindo a Arte no mundo pandêmico, tem uma turma fazendo. E isso é outra prerrogativa da Arte: a de se reinventar sempre, sem perder as ranhuras do tempo. Ao longo da história da humanidade, quantas e quantas vezes a Arte precisou reescrever-se, reencontrar-se, reaprumar-se? E ela nunca nos decepcionou. Enfrentou ditaduras, revoluções, desastres, pandemias, testemunhou e protagonizou todos os avanços e solavancos tecnológicos desde o início do tempos, da descoberta do fogo ao mapeamento genético do coronavírus. Se algo vai sobreviver e nos ensinar o caminho é a Arte.
Nesses meses de confinamento, muita gente foi à luta em busca de uma linguagem que unisse várias dessas tecnologias em prol de um entretenimento para seres isolados. A lógica nos levou ao canal: computador, celular, internet, logo vieram as lives, pessoas recitando, cantando, tocando, atuando. O Sesc rapidamente entendeu o recado e patrocinou várias delas (#EmCasaComSesc). À medida que as semanas foram passando, outras práticas surgiram, misturando as coisas e melhorando tudo. Uns poucos conseguiram captar a mensagem desse “novo mundo”. E essa Arte veio para ficar, para além da pandemia, a que uniu com precisão Teatro, ou Cinema, ou Música, ou Poesia, ou Dança, ou Literatura, etc, ou tudo junto, à teia virtual de nossos sentidos.
Uma dessas manifestações artísticas precisas está sendo realizada pela @CasaCuíra, sob os auspícios das #3AtrizeS confinadas: @monalisadapaz_atriz, @banhospauli e @zecharone. Os vídeos – quatro até agora – estão disponíveis na página do Instagram da Casa Cuíra, já citado acima, e têm, no máximo, cinco minutos de duração.
Monalisa da Paz, Pauli Banhos e Zê Charone conseguiram sentir o cheiro dessa nova realidade, juntaram seus conhecimentos e transformaram os fazeres, construindo narrativas singelas, mas cheias de voz e resistência, carregadas de delicadeza e Poesia. Da complexidade do confinamento, extraíram o simples para nos mostrar como pode ser simples a Arte, trazendo à tona a certeza de que haverá vida após a pandemia, e ela pode ser melhor.
Entre Feminices e Carnes de Mulher, são alguns experimentos muito bem sucedidos na intenção de encantar. E encantar com propriedade, sem prescindir de recados que todos nós precisamos ouvir, entender e incorporar, até para que saiamos da quarentena tendo aprendido mais do que usar máscara e lavar as mãos.
E o bom é que, ao que tudo indica, elas não pretendem parar. Há já o anúncio de que toda quarta-feira, às 19:00, as três mulheres estarão a postos para nos ensinar mais alguma coisa, como, por exemplo, a noção de que estudar, pesquisar e debater é importantíssimo, mas não pode ser maior do que ir lá e fazer.
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