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Três Pontas

ondovato9

Atualizado: 28 de set. de 2021

A luz bateu forte em meus olhos quando abri a porta de entrada da casa e a

tarde invadiu os recintos mofados. Era um crepúsculo típico do norte, a

luminosidade viva e brilhante, um cheiro de chuva no ar e o colorido febril

da periferia. O céu beijava a copa das árvores e derramava seu azul vibrante

sobre as paredes simples e os vidros reluzentes. Uma nuvem de poeira corria

ao rés do chão impulsionada pelo vento rasteiro da tempestade que se

aproximava. Índios e caboclos andavam maledicentes pela rua, trazendo na

alma a não-pressa como certeza de que amanhã será depois de hoje e hoje é

depois de ontem e que os minutos se sucedem queiramos ou não. Os sinos da

igreja de São Miguel Arcanjo soaram a meia hora de uma hora qualquer, sem

importância, e os sons fugidios da cidade perderam-se no ralo do tempo num

redemoinho de sucessivos e incontáveis tuins.

No meio do quarteirão comum de uma rua comum, aquela casa como todas as

outras não se destacava, a não ser pela imensa castanhola espalhando folhas

e frutos na calçada. Os batentes das portas e janelas eram de um verde

cintilante em contraste ao azul opaco das paredes. E eu estava ali, parado

no pátio de frente da casa, olhando para o nada e para tudo, como se

buscasse um detalhe, um momento paralisado. A mente girando em todas as

direções sem pensar, num oceano terno, calmo e uniforme, a paz. No

burburinho dourado do fim da tarde um som choroso de ladainha veio em ondas

pequenas e circulares de uma pedrinha jogada na superfície perfeita do mar.

Eu me virei lentamente, mirei o corredor estreito e escuro da casa e

aguardei a luz penetrar em cada fresta, cada vão, como água de enchente que

não respeita vazios. Era um corredor comprido com três quartos à esquerda e

no fim um cômodo onde ficavam a geladeira, a televisão, duas cristaleiras

altas, uma mesa redonda de vidro, duas confortáveis cadeiras de balanço e um

altar de madeira, onde imagens de santos rodeavam a grande Nossa Senhora de

Nazaré, que abençoava as fotografias do Santo Padre e de duas dezenas de

vivos e mortos da família. De onde estava podia ver uma senhora de cabelos

brancos remexendo a geladeira e ao fundo o grande quintal de muitas frutas,

plantas e prazeres. Entrei novamente na casa, seguindo o som monocórdio de

reza doída, que parecia sair do último quarto. Então, tudo que era abstrato

e turvo ia ganhando forma, como a barriga da mãe, mês a mês se transformando

no ovo que vai gerar a vida. Narinas abertas em pesquisa constante, os

cheiros penetrando os desvãos do cérebro, trazendo mais uma vez as

lembranças perdidas no lento caminhar à morte, o pó acumulado sobre os

móveis, o penico curtido pelas décadas, a velhice e seus odores fazendo um

rasgo em minha carapaça segura e vulnerável por tudo que escondemos em nós,

por tudo o que somos, por tudo que deixamos de ser, e por aquilo que ainda

não é. O corredor sombrio fechava-se em si mesmo, enredado pelas paredes

finas e pela parca luz vinda da rua e do quintal. Ao chegar à porta do

quarto vi minha mãe sentada à cabeceira de uma cama pequena e azul, onde uma criança parecia repousar doente. Suas roupas soltas e coloridas contrastavam com a penumbra e com a oração fervorosa que saía em jorro contínuo de sua boca pintada de um vermelho doce. Apesar do calor, a criança se aninhava sob um cobertor pesado, deixando à mostra apenas um tufo de cabelos negros. Minha mãe, de cabeça baixa, nem piscou quando entrei. Com a agonia dos aflitos ergueu as mãos aos céus e acelerou a prece, cobrindo o rosto em

seguida, como a esperar o desfecho de uma tragédia anunciada. Aproximei-me

da cama em silêncio e ajoelhei-me, afastei o cobertor com delicadeza e notei

uma estranha familiaridade naquele rosto. Toquei-o, virando-o com cuidado em

minha direção. Meu rosto transfigurou-se de assombro e eu vi a gruta escura

me envolvendo em descompasso pela milionésima vez, o gemido incessante de

novena invadindo a mente desconexa, tentando juntar as peças e os

significados de algo que eu conhecia mas não podia explicar. E num clarão me

descobri nos devaneios de um sonho repetido à exaustão nos últimos anos, os

grilhões da rememória me prendendo a um instante em que a liberdade era

apenas um fio partido. Da semiconsciência retornei em queda livre para

minha prisão: eu aos vinte e dois anos vislumbrando a mim mesmo com seis

anos de idade prostrado em uma cama, guardado por minha mãe. Voltava

eternamente no tempo para ver um momento perdido de minha infância raquítica

e esquecida. Tomado pelo terror, com o peito em pestilento galope, corria

para a copa e tentava em vão falar com aquela senhora, e só aí percebia que

era minha avó, o cheiro de óleo de alfazema nos cabelos arrumados, o vestido

estampado, os chinelos macios e confortáveis, os olhos miúdos, severos e

acalentadores. Aquela era a mulher que me criara desde o nascimento e que

fora minha referência de mãe, carinho e amor, e que é a dona de todas as

lembranças boas que ainda trago em mim. O choro brotando sem pena, as

lágrimas descendo pelas faces e os olhos castigados pelo vermelho crepuscular, que entrava violento pela claraboia, deixando tudo em tom

laranja, a verdadeira cor do medo. Nesse instante, gritos vinham do quarto e

a criança saía correndo de seu sono enfermo pelo corredor. Nossa-minha mãe

vinha atrás, aos tropeções, aos atropelos, tentando alcançar a mim, criança.

O menino, veloz, num salto anormal, atirava-se em meu colo, e eu me via

carregando a mim mesmo com seis anos de idade. Os olhos das duas mulheres

nos encontravam e elas caíam de joelhos, chorando em súplica. Então, a

criança abre a janela do inferno e começa a transformar-se: o corpo

compacta-se rapidamente, braços e pernas tornam-se musculosos, os olhos

abrem-se esbugalhados, as sobrancelhas arqueiam-se, os lábios se partem

leporinos, e os dentes saltam das gengivas. Tudo ocorrendo ao toque dos meus

dedos, nas palmas de minhas mãos. Uma força descomunal emerge da criança,

que agarra meu pescoço tentando me estrangular. Quando minha boca abre em

busca de ar e vida, a criança-monstro entra em mim, e eu sinto meus

dentes rasgando a sua-minha carne e o corpo estranho rompendo minha garganta num defloramento dolorido e sangrento.

Acordo em sobressalto, o corpo banhado em suor, o rosto desfigurado em lágrimas, o coração em desabalada carreira. Aquela criança-monstro nunca mais me abandonou, assim como a imagem das duas mulheres virando as costas para mim.


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