A luz bateu forte em meus olhos quando abri a porta de entrada da casa e a
tarde invadiu os recintos mofados. Era um crepúsculo típico do norte, a
luminosidade viva e brilhante, um cheiro de chuva no ar e o colorido febril
da periferia. O céu beijava a copa das árvores e derramava seu azul vibrante
sobre as paredes simples e os vidros reluzentes. Uma nuvem de poeira corria
ao rés do chão impulsionada pelo vento rasteiro da tempestade que se
aproximava. Índios e caboclos andavam maledicentes pela rua, trazendo na
alma a não-pressa como certeza de que amanhã será depois de hoje e hoje é
depois de ontem e que os minutos se sucedem queiramos ou não. Os sinos da
igreja de São Miguel Arcanjo soaram a meia hora de uma hora qualquer, sem
importância, e os sons fugidios da cidade perderam-se no ralo do tempo num
redemoinho de sucessivos e incontáveis tuins.
No meio do quarteirão comum de uma rua comum, aquela casa como todas as
outras não se destacava, a não ser pela imensa castanhola espalhando folhas
e frutos na calçada. Os batentes das portas e janelas eram de um verde
cintilante em contraste ao azul opaco das paredes. E eu estava ali, parado
no pátio de frente da casa, olhando para o nada e para tudo, como se
buscasse um detalhe, um momento paralisado. A mente girando em todas as
direções sem pensar, num oceano terno, calmo e uniforme, a paz. No
burburinho dourado do fim da tarde um som choroso de ladainha veio em ondas
pequenas e circulares de uma pedrinha jogada na superfície perfeita do mar.
Eu me virei lentamente, mirei o corredor estreito e escuro da casa e
aguardei a luz penetrar em cada fresta, cada vão, como água de enchente que
não respeita vazios. Era um corredor comprido com três quartos à esquerda e
no fim um cômodo onde ficavam a geladeira, a televisão, duas cristaleiras
altas, uma mesa redonda de vidro, duas confortáveis cadeiras de balanço e um
altar de madeira, onde imagens de santos rodeavam a grande Nossa Senhora de
Nazaré, que abençoava as fotografias do Santo Padre e de duas dezenas de
vivos e mortos da família. De onde estava podia ver uma senhora de cabelos
brancos remexendo a geladeira e ao fundo o grande quintal de muitas frutas,
plantas e prazeres. Entrei novamente na casa, seguindo o som monocórdio de
reza doída, que parecia sair do último quarto. Então, tudo que era abstrato
e turvo ia ganhando forma, como a barriga da mãe, mês a mês se transformando
no ovo que vai gerar a vida. Narinas abertas em pesquisa constante, os
cheiros penetrando os desvãos do cérebro, trazendo mais uma vez as
lembranças perdidas no lento caminhar à morte, o pó acumulado sobre os
móveis, o penico curtido pelas décadas, a velhice e seus odores fazendo um
rasgo em minha carapaça segura e vulnerável por tudo que escondemos em nós,
por tudo o que somos, por tudo que deixamos de ser, e por aquilo que ainda
não é. O corredor sombrio fechava-se em si mesmo, enredado pelas paredes
finas e pela parca luz vinda da rua e do quintal. Ao chegar à porta do
quarto vi minha mãe sentada à cabeceira de uma cama pequena e azul, onde uma criança parecia repousar doente. Suas roupas soltas e coloridas contrastavam com a penumbra e com a oração fervorosa que saía em jorro contínuo de sua boca pintada de um vermelho doce. Apesar do calor, a criança se aninhava sob um cobertor pesado, deixando à mostra apenas um tufo de cabelos negros. Minha mãe, de cabeça baixa, nem piscou quando entrei. Com a agonia dos aflitos ergueu as mãos aos céus e acelerou a prece, cobrindo o rosto em
seguida, como a esperar o desfecho de uma tragédia anunciada. Aproximei-me
da cama em silêncio e ajoelhei-me, afastei o cobertor com delicadeza e notei
uma estranha familiaridade naquele rosto. Toquei-o, virando-o com cuidado em
minha direção. Meu rosto transfigurou-se de assombro e eu vi a gruta escura
me envolvendo em descompasso pela milionésima vez, o gemido incessante de
novena invadindo a mente desconexa, tentando juntar as peças e os
significados de algo que eu conhecia mas não podia explicar. E num clarão me
descobri nos devaneios de um sonho repetido à exaustão nos últimos anos, os
grilhões da rememória me prendendo a um instante em que a liberdade era
apenas um fio partido. Da semiconsciência retornei em queda livre para
minha prisão: eu aos vinte e dois anos vislumbrando a mim mesmo com seis
anos de idade prostrado em uma cama, guardado por minha mãe. Voltava
eternamente no tempo para ver um momento perdido de minha infância raquítica
e esquecida. Tomado pelo terror, com o peito em pestilento galope, corria
para a copa e tentava em vão falar com aquela senhora, e só aí percebia que
era minha avó, o cheiro de óleo de alfazema nos cabelos arrumados, o vestido
estampado, os chinelos macios e confortáveis, os olhos miúdos, severos e
acalentadores. Aquela era a mulher que me criara desde o nascimento e que
fora minha referência de mãe, carinho e amor, e que é a dona de todas as
lembranças boas que ainda trago em mim. O choro brotando sem pena, as
lágrimas descendo pelas faces e os olhos castigados pelo vermelho crepuscular, que entrava violento pela claraboia, deixando tudo em tom
laranja, a verdadeira cor do medo. Nesse instante, gritos vinham do quarto e
a criança saía correndo de seu sono enfermo pelo corredor. Nossa-minha mãe
vinha atrás, aos tropeções, aos atropelos, tentando alcançar a mim, criança.
O menino, veloz, num salto anormal, atirava-se em meu colo, e eu me via
carregando a mim mesmo com seis anos de idade. Os olhos das duas mulheres
nos encontravam e elas caíam de joelhos, chorando em súplica. Então, a
criança abre a janela do inferno e começa a transformar-se: o corpo
compacta-se rapidamente, braços e pernas tornam-se musculosos, os olhos
abrem-se esbugalhados, as sobrancelhas arqueiam-se, os lábios se partem
leporinos, e os dentes saltam das gengivas. Tudo ocorrendo ao toque dos meus
dedos, nas palmas de minhas mãos. Uma força descomunal emerge da criança,
que agarra meu pescoço tentando me estrangular. Quando minha boca abre em
busca de ar e vida, a criança-monstro entra em mim, e eu sinto meus
dentes rasgando a sua-minha carne e o corpo estranho rompendo minha garganta num defloramento dolorido e sangrento.
Acordo em sobressalto, o corpo banhado em suor, o rosto desfigurado em lágrimas, o coração em desabalada carreira. Aquela criança-monstro nunca mais me abandonou, assim como a imagem das duas mulheres virando as costas para mim.
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