Num ponto qualquer da madrugada, quando os fantasmas se revelam e a exatidão se decompõe, acordou. Não havia nada. Só o suor que banhara seu corpo e o lençol. Mas a alma estava fria. Um gelo por dentro. No aparelho de TV em frente à cama ainda estava o bilhete, deixado ali dois dias atrás. Acariciou o espaço a seu lado e suspirou vazios. Todos os vazios de que se lembrava. Levantou-se e caminhou pelo apartamento em busca de um resto de vinho, uma lata de cerveja, uma gota de uísque. No armário da cozinha, apenas o Martíni, que não ousaria tomar. Seria como bebê-la. Prosseguiu sinestésico até a janela. Viu as luzes da cidade no bruxuleio do vento que sacudia as árvores. Soltou o trinco e abriu a folha de vidro. Deixou o ar gelado impregnar os seus poros. Estava nu. Uma nudez semântica.
Nunca vira São Paulo em tanto silêncio. Não havia um carro sequer cortanto a avenida, que pairava oito parágrafos abaixo. Ninguém caminhava pela calçada. Nenhum cão latindo, uivando, ganindo. Nada de gatas no cio. Até o vento era mudo. O farfalhar das folhas verdes não emitia um fonema para ferir o sossego. Nem sua respiração, nem seus batimentos cardíacos. Estava morto. Uma morte silenciosa, nua, vazia.
Fechou a janela e deu as costas para a cidade. Iria penetrá-la. Vestiu uma calça de moleton, uma camiseta e seu casaco de couro sintático, pegou algum dinheiro e saiu. Tomou o cuidado de não trancar a porta. Como um sinal, o elevador estava ali, parado, substantivo. Os ruídos mecânicos tocaram seus nervos e machucaram seus sentidos, como se fossem a materialização daquele mundo exterior, inútil para ele. Passou pelo porteiro sem saudação. Em sua casinhola uma minúscula TV coloria o escuro. Aguardou a liberação da fechadura e deu um passo para fora de si. Bateu o portão com força e permitiu que suas pernas fizessem o que sabiam fazer. Seguiu-as.
Encontrou um ser vivo logo depois de virar a rua. Um sujeito andarilho, sujo e roto, que pediu-lhe um cigarro. Apenas meneou a cabeça e não parou. Havia seis anos que deixara de fumar. Nessas horas um cigarro era sempre uma boa companhia: a sensação de estar vivo ao tragar sua própria morte. Voltaria a fumar. Ponto final.
Algumas quadras adiante encontrou um bar ainda aberto. Entrou. Meia dúzia de elementos parônimos vomitavam vocábulos muito aliterados. Não compreendia. Nada. Sentou-se ao balcão e pediu uma cerveja. Sorveu-a em goles rápidos e atropelados. Ergueu-se, pediu sua antiga marca de cigarros e uma caixa de fósforos. Abriu outra cerveja e foi à calçada. Sorriu ao descobrir que ainda sabia fumar como um profissional. Tragadas longas, e a fumaça saindo contínua, retilínea, poluindo o ar dos outros. Agora que descera realmente ao mundo, pôde observar que a vida ali continuava. Os bêbados de sempre, os alcoólatras de sempre, as putas de sempre. Sim, bar sem putas não era bar. Uma senhora, vestida de oncinha, pediu um copo de cerveja. Ele, sem falar, esticou o braço e pegou um copo na pia, encheu-o e destinou-o à pobre mulher. Ela agradeceu e ficou por ali a solfejar certas orações indiretas. Ele a ignorou. Ela partiu para outro marmanjo. Bebeu sua cerveja tranquilamente, sem mais interrupções. Pediu a terceira, e decidiu que aquela seria a última. Só bebia além da conta em sua própria casa. Três cervejas eram seu limite. Não seria um sujeito indeterminado. Não no presente.
Bebeu até a última gota, pagou suas cervejas, o cigarro, e partiu. Não sabia bem para onde ia. Só parou no meio de uma avenida para apreciar uma dupla de dígrafos perseguindo pequenas vírgulas no meio do mato. Seria uma carnificina, pensou. Não quis ver o desfecho.
Caminhou mais uns dois ou três capítulos até chegar à ponte. Lá de cima podia ver os poucos automóveis cortando velozmente a rodovia. Ficou parado muitos minutos, até subir no travessão. Abriu os braços em T e atirou-se no vazio, silencioso e nu. Lá embaixo, margeando o rio, havia um belo jardim de letras.
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