Os primeiros pássaros começam a cantar no limite da floresta. É um caminho primitivo que corta a mata intensa e leva a outros mundos, novas paragens. Atrás vem a peste, a mortal epidemia que ceifa impiedosa as comunidades por onde passa.
A aldeia, a duas centenas de metros dali, já sente os eflúvios da doença. A cada dia novos fugitivos chegam, alguns já trazem as chagas da moléstia. Esses não entram. Há um acampamento na outra entrada da aldeia, onde doentes tratam de doentes, doentes enterram doentes, e os próximos doentes a chegar serão os seguintes a cumprir o ciclo. O problema é que os sãos são autorizados a cruzar o povoado, e muitos abrigam a enfermidade em seus corpos franzinos sem que suas marcas sejam visíveis. Seguem numa procissão sombria em busca dessa estrada, a que leva a outros mundos.
Foi nessa paisagem idílica, nesse lugarejo às margens da floresta, que três crianças cresceram juntas, três garotos, nascidos no mesmo verão. Périplo, Deletério e Magnânimo tornaram-se grandes amigos e graças às travessuras da infância e aventuras da juventude, conheciam como poucos aquele lugar. Para Périplo isso esgotava a expansão do conhecimento e ele desejava imensamente seguir por aquela estrada. Para Deletério, sempre um pessimista, que via o mundo lá fora exatamente igual à sua aldeia, cheio de intrigas e maldades, sair de lá não era aprazível. Já Magnânimo preferia ficar por puro comodismo, sua gentileza e honradez o alçaram à condição de ser respeitado por todos, não tinha por que mudar.
A peste, no entanto, alterou os planos. Não para Périplo, claro, que só não fora embora ainda por falta de companhia, mas para Deletério, que via a morte como algo irretorquível, desde que o mais distante possível dele, e para Magnânimo, para quem a admiração dos outros não lhe serviria de nada se estivesse morto. Assim, os três amigos, depois de longas e acaloradas deliberações, mas principalmente porque dois moradores da aldeia apareceram com os sinais da peste, combinaram de fugir e conhecer a outra ponta da estrada.
Cena 1. A partida.
Périplo foi o primeiro a chegar, caminha de um lado para o outro, traz duas bolsas e um cajado. Uma bruma intensa, muito comum naquela região, impede a visibilidade a poucos metros de distância, tornando o ambiente um tanto tenebroso, mas bastante familiar para os nativos.
PÉRIPLO
Ora, mas onde se meteram esses dois.
Marcamos antes do amanhecer e os pássaros já estão cantando.
Precisamos sair logo, para evitar outros andarilhos fugitivos.
O que poderá ter acontecido?
Deletério... posso até imaginar.
Mas, Magnânimo, sempre tão correto, altivo...
Nesse momento, um rumor assusta os pássaros. Périplo se esconde. Aos poucos, passos trôpegos se aproximam. Périplo se oculta ainda mais, mas em seguida levanta-se, reconhecendo a voz que se achega. É Deletério bêbado, remexendo uma das sacolas que traz.
DELETÉRIO
Espero não ter esquecido nada.
Faca, pão, álcool.
Manta.
Mapa, que eu fiz de cabeça.
PÉRIPLO
Muito bem, Deletério.
Como podes vir para nossa jornada nesse estado lastimoso?
E como poderemos confiar nesse mapa?
DELETÉRIO
Caro amigo Périplo, como podes receber assim um irmão que vai se casar?
PÉRIPLO
Não me venha com anedotas, Deletério.
Temos uma longa viagem pela frente.
O bêbado, que mal se aguenta nas próprias pernas, cai na gargalhada.
DELETÉRIO
Pois fique sabendo, amado irmão, que ontem na taverna contei que ia casar para um grupo de pinguços.
Disse-lhes que fugiria com minha amada ao amanhecer.
E eles acreditaram!
Bebi de graça até agora.
E ainda me deram uma garrafa para a viagem.
Périplo tenta pegar a garrafa, mas, apesar da bebedeira, Deletério demonstra ainda bons reflexos.
DELETÉRIO
Não faça isso, Périplo, esta garrafa pode salvar nossas vidas.
Assim como este mapa, posso garantir.
Mesmo eu não tendo ido tão longe assim em minhas andanças pela floresta, conversei com alguns aldeões peregrinos.
Eles me deram boas referências dos caminhos que temos a seguir.
PÉRIPLO
Tudo bem, vou acreditar.
Mas, guarde-os bem: o mapa e a garrafa.
Diga-me, viste Magnânimo?
Deletério imediatamente se lembra de algo e remexe bolsos e bolsas, até encontrar um pedaço de papel. Entrega-o a Périplo, que o abre já contrariado.
PÉRIPLO
Deletério, nós estamos na Idade Média.
Nós não sabemos ler.
Você sabe que Magnânimo só aprendeu a ler e escrever porque os padres gostavam dele e do...
MAGNÂNIMO
Não precisarás mais decifrar os signos do saber nem falar sobre minhas intimidades com os padres do mosteiro, caro amigo.
Trago-vos pessoalmente o motivo de meu indesculpável atraso.
Bem, na verdade, não trago.
Mas, peço-lhes, um pouco mais de paciência até que ele chegue.
DELETÉRIO e PÉRIPLO
Ele quem?
MAGNÂNIMO
Ele, o motivo de meu atraso.
Ela, a mulher de meus mais afáveis sonhos.
PÉRIPLO
Ah, não creio, Magnânimo.
Julgava-o o ser mais racional entre nós.
Deletério enxerga tudo com olhos deveras derrotistas.
Eu sou o sonhador emérito, o que menos tem os pés fincados na terra.
Tu, Magnânimo, eras minha esperança cerebral,
Aquele que nos guiaria arrazoadamente pelos rumos do desconhecido.
MAGNÂNIMO
Ora, nobre amigo, justo eu que gozo de alto prestígio em nossa promissora aldeia?
Sou o que mais perco com a viagem.
DELETÉRIO
Promissora aldeia?!
De que conto de fadas tiraste tal asneira?
Um amontoado de casebres e choupanas no caminho da peste!
Pois perderás a vida se ficares.
Até eu, o pessimista, sei que não há alternativa.
Ou fugimos, ou fugimos!
MAGNÂNIMO
Amigos, pois saibam que mesmo um ser sensato como eu, capaz de atitudes carregadas de lógica e coerência, é suscetível às artimanhas do coração.
Por isso, peço-lhes calma.
Tenho certeza que minha amada Dadivosa está a caminho.
Ao ouvir o nome da moça por quem Magnânimo caíra de amores, Deletério demonstra reconhecê-lo e passa a dar uns cutucões em Périplo, que dirige a palavra ao amigo apaixonado.
PÉRIPLO
Diga-nos, enamorado amigo, ela ficou de vir até aqui?
Deletério, pare de mexer comigo!
O que foi?
Deletério esboçou um falatório, mas foi interrompido por Magnânimo.
MAGNÂNIMO
Olhe, Périplo, não foi bem assim.
Eu e Dadivosa marcamos atrás da igreja antes do pio do primeiro pássaro.
Deve ter acontecido algo, já que ela não apareceu.
Achei que ela pudesse ter vindo direto para cá, pois eu a avisei que nos encontraríamos aqui.
Imagino que ela deva estar chegando.
Périplo e Magnânimo iniciam uma discussão, onde é difícil ouvir com convicção cada palavra pronunciada. Até que Deletério grita, pondo fim ao debate ininteligível.
DELETÉRIO
Pois, digo-lhes, amigos: de nada valerá esta discussão.
Conheço a Dadivosa.
Périplo, mas, principalmente, Magnânimo olham para Deletério com surpresa e espanto.
PÉRIPLO
Isso não chega a ser surpreendente, pensando bem.
Afinal, nossa aldeia não é tão grande assim.
Eu mesmo, provavelmente, já vi a referida moça, só não estou unindo o nome à pessoa no momento.
DELETÉRIO
Bem, queridos companheiros, quando disse que conheço, falava no sentido carnal.
Magnânimo altiva-se, questionador.
DELETÉRIO
A moça em questão é uma das trabalhadoras do lupanar, já deitei com ela algumas vezes.
É realmente muito bonita, mas não é apropriada para levar para casa.
PÉRIPLO
Pois mal o reconheço, amigo Magnânimo.
Não sabia que frequentavas essas casas de baixos sentimentos.
MAGNÂNIMO
E realmente não frequento, Périplo.
Apenas imaginei que, já que partiria sem certeza de volta, poderia usufruir um pouco dos prazeres da carne.
DELETÉRIO
Mas não precisava se apaixonar...
MAGNÂNIMO
Pois fique sabendo, Deletério, que minha mente não é tão pequena quanto a sua e que sei identificar uma alma boa mesmo nas condições mais adversas.
Dadivosa é um amor, doce e prestativa.
DELETÉRIO
Prestativa, sei...
MAGNÂNIMO
Cale-se, ser maldoso.
É preciso ter olhos amáveis para os nossos semelhantes.
Não podemos nos quedar diante de obstáculos tão irrelevantes como este.
Uma meretriz não pode mudar de vida e ser um exemplo aos olhos do Criador?
Tanto Périplo quanto Deletério demonstram uma certa dúvida, mas, diante do olhar do inquisidor, assentem com a cabeça e olham levemente comovidos para o amigo. Mas é Deletério quem quebra o silêncio e retoma a palavra.
DELETÉRIO
Perdoe-me, amigo, não lançarei mais meu veneno na forma de palavras em suas veias sentimentais.
Devo dizer que muito me inspira um coração apaixonado.
Apesar de não saber o que fazer com isso.
PÉRIPLO
Irmãos, pensemos: o dia já está raiando.
Em poucos minutos, a horda de fugitivos e doentes começará a se arrastar pela estrada e nós teremos que nos misturar a eles.
Precisamos ir agora, ou nossa já frágil segurança se tornará uma quimera.
MAGNÂNIMO
Mas, e Dadivosa?
Se ela estiver vindo?
PÉRIPLO
Desculpe-me a sinceridade, mas não creio que a cativante senhorita ainda venha a aparecer para se juntar a nós em tão arriscada aventura.
Precisamos partir já ou desistir de nossa empreitada.
Todos resignam-se e começam a verificar seus pertences para a jornada.
DELETÉRIO
E por onde seguiremos, Périplo?
PÉRIPLO
Ora, amigos, pensei que já havíamos decidido isso.
Vamos seguir por esta estrada até que ela chegue a algum lugar.
E de lá continuaremos, até nos vermos o mais longe possível da peste.
Não foi assim que combinamos?
DELETÉRIO
Sim, eu me lembro.
É que agora, observando melhor, penso que podemos seguir margeando a floresta...
MAGNÂNIMO
Deletério, pense!
Seja mais assertivo.
A peste vem da direita.
PÉRIPLO
Sim, a peste vem da direita, logo...
DELETÉRIO
A peste pode vir da direita ou da esquerda.
PÉRIPLO e MAGNÂNIMO
Dessa vez, ela está vindo da direita.
PÉRIPLO
Certeza!
Da direita!
MAGNÂNIMO
Sim, da direita!
DELETÉRIO
Então, devemos seguir no sentido contrário, certo?
Pois que seja feito!
Périplo estica o braço para a frente. Deletério e Magnânimo seguem-no no gesto, colocando uma mão sobre a outra. E, juntos, movimentam-nas para o alto.
PÉRIPLO, DELETÉRIO E MAGNÂNIMO
Um por todos e todos por um!
PÉRIPLO
Rapazes, esse cumprimento e esse lema que eu criei têm tudo para fazer sucesso.
Vamos!
Os amigos riem, enquanto partem para a viagem de suas vidas.
DELETÉRIO
Satisfaçam-me uma curiosidade.
PÉRIPLO e MAGNÂNIMO
Pois, diga!
DELETÉRIO
Caminhando assim em linha reta não corremos o risco de encontrar o fim da Terra e cair no vazio?
MAGNÂNIMO
Ah, amigo, a noção de Terra plana foi descartada ainda na Grécia antiga.
Desde lá, vários estudiosos e pesquisadores já determinaram a esfericidade da Terra, assim como a Lua e o Sol.
Mas, creia: ainda há ignorantes que pensam que a Terra é um pergaminho desenrolado.
DELETÉRIO
Além de pessimista, ignorante.
Eu mereço!
PÉRIPLO
Então, se sairmos daqui e mantivermos uma linha perfeita, chegaremos de volta ao mesmo ponto?
MAGNÂNIMO
Exatamente.
PÉRIPLO
Fascinante!
Os três amigos seguem conversando alegremente.
Cena 2. O Bardo.
Os animais que habitam a floresta ainda não haviam se deparado com trio tão entusiasmado. Estavam mais acostumados com os caminhantes cabisbaixos e silenciosos, cujo aspecto maltrapilho e nauseabundo denunciava o que tentavam deixar para trás.
Os três seres que passavam agora estavam em pleno vigor e em nada demonstravam um arrefecimento pelo desejo de viver. Muito pelo contrário, pareciam em festa. Talvez porque vinham saboreando a tal bebida que Deletério ganhara na véspera.
DELETÉRIO
Bem que eu disse que esta garrafa poderia nos salvar a vida.
PÉRIPLO
Sim, Deletério.
Isso porque o senhor, que era o responsável por trazer água para a primeira etapa da viagem, simplesmente esqueceu de item tão importante.
DELETÉRIO
Já discutimos isso, foi somente um deslize.
Por acaso, eu tirei os recipientes com água da sacola para colocar minha manta e esqueci de devolvê-los.
Acontece!
PÉRIPLO
Ah, peste!
MAGNÂNIMO
Não diga isso, amigo Périplo.
Dizem que dá um azar danado falar o nome da moléstia.
Além do quê, se este mapa estiver certo...
DELETÉRIO
É claro que está.
Fui eu que fiz.
PÉRIPLO
Pois é melhor colocar em dúvida a veracidade dessas informações.
E você, Magnânimo, não sabia que era adepto de superstições...
MAGNÂNIMO
Calem-se!
Ouçam!
É feito o silêncio. Os três fazem a mesura de direcionar os ouvidos. Não muito distante dali a água rumoreja.
MAGNÂNIMO
Ouviram?
Era o que queria dizer: se este mapa estiver certo já estamos próximos de um córrego que matará nossa sede e onde poderemos armazenar água.
PÉRIPLO
Armazenar onde, se o responsável pelos recipientes não os trouxe?
A não ser que...
Périplo olha para a garrafa que está na mão de Deletério, que arregala os olhos.
DELETÉRIO
Não, não, não.
Imagine!
Não sabemos quanto tempo permaneceremos nesta caminhada.
Este é o único álcool de que dispomos.
De maneira alguma podemos dispensá-lo.
MAGNÂNIMO
Vês, caro amigo, se aquilo não é uma taverna.
Magnânimo aponta para o vazio, Deletério vira-se.
DELETÉRIO
Onde, onde?
Périplo aproveita-se da distração e pega a garrafa, para desespero do amigo.
DELETÉRIO
Isso não é justo.
Como podes, tu, o mago da gentileza, enganar um pobre bêbado desta forma?
MAGNÂNIMO
Nesse ponto, amigo Deletério, minha gentileza e sua embriaguez valem exatamente a mesma coisa se estivermos mortos: nada.
Os três caminham mais um pouco em direção à água. Assim que a encontram tornam-se pessoas mais felizes. Brincam, sorriem, gargalham. Molham-se uns aos outros, na mais infantil das brincadeiras. Matam calorosamente a sede. Logo depois, para desespero de Deletério que ainda toma um bom gole, Périplo despeja o conteúdo da garrafa e a preenche com a água do ribeirão. Em seguida, os três, como se fosse uma espécie de ritual, erguem-se para urinar.
Deletério não perde a oportunidade de olhar para o membro de Magnânimo, que está entre os dois amigos.
DELETÉRIO
Não canso de admirar sua competência, caro amigo.
E pensar que tão opulenta virtude lhe rendeu educação e dinheiro.
Périplo observa também a virtude do amigo.
PÉRIPLO
Sim, ainda vivemos num tempo em que o corpo pode ser a fonte da sobrevivência.
Nesse aspecto, tu e Dadivosa não diferem tanto assim.
MAGNÂNIMO
É verdade, sábio Périplo, não havia pensado dessa forma.
Sob esse ponto de vista, eu e a bela Dadivosa vivemos, cada um a seu tempo e a seu modo, em plena atividade de meretrício.
DELETÉRIO
Sim, amigo, mas somos testemunhas do quanto foi difícil se acostumar com isso.
MAGNÂNIMO
É verdade.
Lembro até hoje do padre Demérito...
Um barulho aflora da mata. Só então percebem que do outro lado, margeando o córrego, há uma pequena estrada. O som vem de lá e parece um cântico. Logo constatam se tratar de um bardo e sua indefectível cítara.
BARDO
Sofre o bardo em débil canto
O torpe branco ocupa a tela
Do artista em seu pesado manto
Sem seu chão, sua vila bela
O nascer do sol via da janela
Agora vaga pelo mundo santo
Cada vez mais longe da donzela
Que deixava sua vida um puro encanto
Um amor de fardo tanto
À distância se esfarela
Se já não era um grande espanto
Virará reles mazela
Os três amigos erguem-se do esconderijo, provocando um pequeno susto no cantor. Nunca ouviram nada igual. Era, por assim dizer, revolucionário. E, talvez, por ser revolucionário lhes parecera um tanto abjeto.
Não é preciso pensar muito para adivinhar os ouvidos mais agredidos por tal melodia. Justamente aqueles que cresceram ouvindo os cânticos sagrados da santa igreja. Mas sem perder a ternura.
MAGNÂNIMO
Honorável bardo, permita-me uma interferência, um pretensioso comentário.
Não me parece que esta sua música possa agradar as multidões.
BARDO
E quem disse que tenho tal intenção?
Agora que sou um degredado...
DELETÉRIO
Eu gostei!
Tem pegada.
PÉRIPLO
Pegada?
DELETÉRIO
Não sei, inventei agora.
Mas, horoná...
MAGNÂNIMO
Honorável!
DELETÉRIO
Honorável bardo, não quero ser inconveniente, mas tereis, por acaso, uma bebida?
BARDO
Oh, sim, caro, será de muito bom grado dividir este conhaque caseiro, que uma dama muito fogosa me presenteou.
MAGNÂNIMO
Se disser que foi Dadivosa...
PÉRIPLO
Não diga asneiras, amigo.
Não deixe que o coração lhe governe o cérebro.
Dadivosa está para lá.
Nosso amigo veio pela trilha do córrego, de lá.
Portanto, não é sua amada meretriz a citada fogosa.
BARDO
Ah, não foi Dadivosa, embora a conheça muito bem.
Minha amiga chama-se Lépida e é atrevida com conhaques, homens e mulheres.
Mas não é meretriz, faz por amor.
Enquanto o simpático bardo ria e abria sua garrafa de conhaque, Magnânimo teve um leve desalento pela vida desairosa de sua Dadivosa. Um a um todos tomaram uma dose da bebida, e, ao que parece, também, usufruíram de sua preferida.
PÉRIPLO
Nem nos apresentamos.
Eu sou Périplo, este é Deletério e o apaixonado, Magnânimo.
BARDO
Muito prazer, me chamo Bíbulo.
A vosso dispor.
MAGNÂNIMO
Por óbvias questões, já posso considerá-lo um amigo íntimo.
Portanto, vou direto ao ponto: caro Bíbulo, deves, urgentemente, mudar teu estilo musical.
A poesia, vá lá, podemos consertar aqui e ali, mas que ritmo é esse, em que não se observa variações melódicas, nem a doçura?
Um canto que não nos propicia calma não é, propriamente, um canto.
BÍBULO
Sim, sim, falava justamente sobre isso.
Dizia que agora que sou um degredado...
DELETÉRIO
Engraçado, eu já gostei do ritmo, a letra eu achei meio...
PÉRIPLO
Deletério!
Pare de interromper o bardo.
DELETÉRIO
Desculpe, desculpe, eu só queria...
Veja mais uma dose desse conhaque fantástico da moça... Lépida, que me calo.
BÍBULO
Claro, amigo Deletério.
Como dizia, hoje sou um degredado e não me importo mais com o que deseja o grande público.
Por isso faço minha própria música, sem pensar nas críticas.
Cansei de seguir o padrão, o que determina a etiqueta e os bons costumes.
MAGNÂNIMO
Mas, caro Bíbulo, não há casamento entre música e letra.
E até onde sei é a tendência atual, não é mesmo?
Bíbulo assentiu com a cabeça.
MAGNÂNIMO
Perdoe-me, amigo bardo, mas o que fizeste aqui é muito feio.
BÍBULO
Mas diz o que precisa ser dito!
DELETÉRIO
Isso!
Dê cá esta garrafa que nós estamos do mesmo lado.
Deletério toma a garrafa do cantor e se posiciona ao seu lado, olhando sarcástico para Magnânimo.
PÉRIPLO
Caros, nada disso é mais importante do que deixarmos nosso amigo contar sua história.
Eu estou muito curioso para saber por que foste degredado, Bíbulo.
BÍBULO
Ora, amigo Périplo, muito obrigado pela atenção.
Bem sabes que há reinos onde o pensamento é livre e as artes são respeitadas.
Venho de um lugar onde uma nova ordem vem sendo imposta...
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