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O Céu de Caymmi

ondovato9

Havia uma imagem recorrente na tela azul que via diante de seus olhos. Não conseguira distingui-la, decifrá-la. Sentia apenas uma inútil intimidade. Os olhos fixos na displicência da imensidão. Era uma praia, lembrava. Era dia, o azul denunciava. Mas caía. A cada instante distanciava-se. Lembrou de seu coelho de estimação, que morrera muitos anos antes, e viu nas nuvens que tudo era coelho. Sprint, se chamava. Era a imagem que compunha a tela. Memórias de uma infância boa. Seu pai, sua mãe, seu irmão, seu coelho. Uma família, enfim, perdida por alguns minutos de inaptidão à vida. Sentiu os choros de desespero e as palavras de consolação. Caía.

Sentiu suas mãos afundarem-se na areia, o único gesto que completava-se. Apertou os grãos sob seus dedos indecisos, e a força que minguava. Ouvia o barulho do mar, as ondas quebrando. Mergulhou nas águas verdes e viu peixinhos prateados dançando ao sabor da maré. Tossiu, buscando o ar, e conheceu pela primeira vez o sabor do ferro. Concentrou-se na dor. Não a sentia. Buscou a tristeza, mas não a tinha. Nem alegria. Só o vazio se apresentava, sórdido. Um riso ressoou e a vastidão tomou seu corpo. Suas mãos inócuas, sem tato. Os olhos negros procuravam a paz. A lua, sem pena, surgia no céu ainda claro. Aquele era o céu de Caymmi, o que ele via da rede. Arfou, e um intenso jato de luz ofuscou-lhe os olhos. Dobrou-se em pensamento e sentiu o calor da placenta. Agora tudo era vermelho e branco. Ouviu, muito longe, o sussurrar de todas as vozes do mundo. Uma súplica em italiano, um gemido em francês, uma ordem em alemão, uma despedida em português. Já não via o céu de Caymmi. Sabia que só sua respiração estava morta. Em algum lugar, num canto calmo e quieto, sentia o tempo. E foi.

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