Vil garoa
Cai a chuva fina, vã garoa
Terra boa aos que vêm de boa sina
Àqueles que a chuva contamina
É pedra dura, vida torta, mundo à toa
Líquida agulha, a cada pico tudo mina
Gela a pele escurecida, que destoa
Da alva pele, cuja vida viva voa
O teu voo é vida curta, serpentina
O tempo a cada gota que magoa
Morre n’água suja da calçada
Morada nua, fria, pequenina
Quando cai a chuva fina, vil garoa
Escondida na coberta enlameada
Ninguém nota tua face de menina
Cala!
Isa pena na mão dos machos,
A mão esperta
A mão que apalpa
É a mesma mão que embolsa
É a mesma mão que cala!
Cala, Isa!
O cara,
Descarado,
Desmascarado,
Passa a mão na plenária.
Cala!
Mulher tem é que viver
Na dita dura
Essa, então,
Que rebola até o chão
Só pode ser
De putada.
Cala e pena, Isa!
Confundes abraço com assédio,
Amizade com abuso,
Apreço com lascívia.
Precisas de um homem
Para te ensinar
O que é questão de ordem.
Cuidado!
Aqui,
Os Carlões que ladram,
Também mordem!
PM
Quando cospes
Quando zombas
Quando cruzas
Inadvertidamente
As nossas sombras
Quando protestas
Quando iludes
Quando amarras
Postumamente
Nossos ataúdes
Quando gritas
Quando lutas
Quando arrastas
Arbitrariamente
As nossas putas
É que vejo em ti
Minha própria face
E tu?
O que fazes?
Te aproximas,
Armas,
Ferramentas em tua mão
Convidas a mim
E minha palavra
Para um agradável passeio
Em teu zerado camburão
Soneto da nação redundante
Há uma nação encruzilhada
Numa esquina distante do planeta
É linda, gigante, e determinada
A jogar as normas justas na sarjeta
Não nos ouve, não se toca, não vê nada
Corpo em desapego, alma obsoleta
Vê-se no coturno, no pescoço e na calçada
Devia ver-se mais e mais na carne preta
A boca resplandece costurada
Pela agulha fina, vil e conivente
E a Pátria turva e sem um norte
Aceita, mórbida, e talhada
A ser para sempre, eternamente
A que não foi e veio a morte
Verde-vesgo
Vejo ao longe o verde musgo
E o velho oliva vem com o visgo
De calar-me pelo fisgo
Em mim lançado quando rusgo
A boca aberta num engasgo
O olhar trincado, oco, vesgo
O passo em falso, torto, sesgo
O peito sangrando em fundo rasgo
É o preço pago quando o cego
Só quer ver o mundo vago
Se adequa ao sempre antigo
Do caixão torna-se o prego
E quando nota o torpe estrago
Já está morto no jazigo
Foto: Marcos Corrêa/PR
Soneto de salvaguarda ao Queiroz
Ora, ora, mas que intrépida surpresa
Nos ares invernais lá de Atibaia
O que de nossa cara fez gandaia
Estava confinado, que moleza!
Aquele homem cuja alma é a mais lacaia
Que lambe o chão por onde anda a realeza
Mas guarda seus segredos, com certeza
Não pode ser largado em qualquer baia
O modus operandi da famiglia
Não permite que a gente se distraia
Recuar não pode estar em nossos planos
Para manter-se encilhada em Brasília
Contará com os irmãos de sua laia
Os comparsas cidadãos milicianos
Coprolítica
Nasci num subsídio. Fruto de uma medida burocrática.
Fui semente superfaturada, plantada e lavrada em terra invadida.
Cresci na química lasciva, por decretos permitida.
Fui colhida, distribuída e vendida pela máquina.
Fui precificada nos tributos, tão brutos como tua fome.
Virei bala, propina e pedra. Não tenho nome.
Um dia me vi na fervura. No fogo que me transformou em iguaria.
Fui posicionada num prato branco de boteco.
Mero complemento, um adorno. Corno, em cabeça de novilho.
Senti os dentes do garfo nas minhas costas e a faca a cortar-me em pedacinhos.
Via a boca, via os dentes, via a língua. Fui mastigada, triturada, fui comida.
A saliva a gosma o bolo antropofágico descendo garganta abaixo rumo ao ventre operário.
Estômagonde o sucossuga e me desfazdasfasestodas.
Agora eu fluo, intestinal.
Embrevesereimerda e voltareiaomundo retroalimentando o sistema perversoquemefez subsídio.
Resistência
Chora o céu cinzento e envergonhado
Pela ânsia temerosa dessa gente
Pelo voto odioso ou displicente
Que elevou de patamar um celerado
Chora o peito tão intransigente
Pelo amor distante e arraigado
Pois que seja, assim, exacerbado
O que me deixa ainda mais resiliente
Que a resistência seja agora nosso intento
No direito e no dever, nosso legado
Contra o fascismo e a saudade um veneno
Pra barbárie e pra lonjura um alento
Na atitude a na palavra um recado
Na luta e no amor um gesto pleno
O Prego e a Guilhotina
Haverá no momento oportuno
Um prego a travar a engrenagem
Do sistema há séculos criado
Para alimentar o vívido gatuno
O felino provará do seu veneno
Sofrerá como gado na estiagem
E terá o seu caminho desviado
Para um quarto gradeado e bem pequeno
De fora, o montante da propina
Verá o condenado em pose altiva
Sem perceber sua própria vilania
Como a cabeça decepada à guilhotina
Observava consternada e ainda viva
Seu velho corpo em última agonia
Pátria Puta
Pátria puta
Amada minha.
Amante servil,
Serviçal
Sem vontade,
Sem tesão,
Sem desejo.
São tantos os que te comem
Nos sufrágios.
São tantos os sarneiros
Que te calham.
Tantos te achincalham.
Pátria puta
Amada minha.
Cafetões que te usurpam,
Te abusam.
Seviciam tuas carnes.
Pedófilos perversos.
Não sabem que ainda és criança
No relógio dos tempos?
Podres, pútridos,
Te barbalham incólumes,
Porcos patricidas.
Pátria puta
Amada minha.
Chupam tuas tetas
Como galhofa.
Sugam cada gota
Do teu leite.
O leite dos teus filhos.
Eu, nós.
Somos todos teus filhos.
Somos todos filhos da Pátria
Pátria puta,
Amada minha.
Somos todos teus filhos
Da puta
Pátria
Pátria.
Soneto, ainda que tardio
Derrama sobre o ouro lá das minas
A ganância insidiosa da Coroa
No geral da História, o que destoa:
Lutar contra as forças libertinas
Mas as mãos do carrasco são ladinas
E cravaram suas unhas no mistério
Pela língua dos reis, falaz Silvério
Inconfidência em troca de propinas
A amada liberdade, ainda que tardia,
No pescoço do alferes enforcada
Nos despojos, aos pedaços sucumbida
Era ingrata, usurpada utopia
Pela dor atroz assaz legitimada
Outra vez, até hoje interrompida
Soneto à relevância da discussão sobre a série “O Mecanismo” Por que andas tão meditabunda Se abunda a dita mordidela No suflê de coxinha e mortadela Que sequela a massa moribunda? Se é rubra, verde ou amarela Onde está a turba furibunda? Se quedou omissa, pudibunda Não ulula nem bate panela! Incapaz de uma ideia mais profunda A alma assaz nauseabunda Se exime de fazer o seu rebu Nem percebe que a merda toda é oriunda De um buraco escondido lá na bunda Que chamamos docemente de meu cu
A Fura-greve
É sério que és contra a greve?
Logo tu, defensora dos direitos animais
Não vês a malta de bandidos que se atreve
A banir nossas conquistas mais banais?
Se és coxinha ou mortadela tanto faz
É preciso entender a história breve
Do país e sua sina de almocreve
Governo e parlamento de Alcatraz
O inimigo, cara amiga, está acima
Ele flutua em elevado patamar
De penumbras, peculatos, coisas sujas
Numa nação moldada a garatujas
Cuja História recorrente nos intima
Não é hora de ninguém falaciar
O Mestre do Joio
Não me venha com trigo
Tu, que és o mestre do joio
Me enjoo, engulho, não sigo
Teus desmandos, sou tamoio
Não terás a minha voz, o meu apoio
Jamais chamar-te-ei de meu amigo
Teu bando é do mal, é do Inimigo
Segue roubando, triste comboio
Nossa vida, nosso tempo, nosso abrigo
Não vemos, olhar sempre embotado,
A desfaçatez se mostrar em via pública
Nossa culpa, nossa inércia, nosso castigo
Deixar vosso caráter celerado
Fazer ‘inda menor nossa república
O Levante
O Levante é uma ideia.
Uma ideia em movimento.
Uma brisa, o vento,
Vendaval e panaceia.
É um sopro, um alento
Contra a velha alcateia
Caráter de Medeia
Lavrando sofrimento
É doce como a uva
Singelo como a relva
Misterioso como Java
Mas se infiltra como a chuva
Assusta como a selva
E queima como lava
Os Flatos
Eram tantos exorbitantes aparatos
Aparentavam sempre tola regalia
Viviam todos na mais gritante mordomia
Nutridos por especiais espalhafatos
Mas um fato espalhado em rara revelia
Revelou o poder e a gana dos contratos
A podridão em vários níveis e formatos
A república em pleno estado de avaria
Pelos palácios erigidos no planalto
Só circulava um certo cheiro pestilento
Eram os crápulas desfazendo-se em flatos
Usufruindo das delícias do assalto
Reverberando com horror e desalento
Que Brasília é perfeita toca para os ratos
Negreiros
No escuro universo do porão viscoso
Viviam os de vistosa pele escura
O planeta com sua útil tessitura
Organizou um carrossel prodigioso
Tumbeiros de vultosa envergadura
Atravessavam o mar furioso
No recinto infecto e asqueroso
A velha dama alinhavava a urdidura
Com a calma de feroz devoradora
Espreitava em silêncio aquela orgia
Afiando o fio da foice enferrujado
Em conluio com a coroa usurpadora
Num movimento repentino angaria
Para o coche mais um corpo desalmado
Notícia Velha?
É só mais uma bala que ressoa
É só mais um pretinho de favela
Nada que a atroz nação verde-amarela
Não tolere suave, não anua de boa
Um breve aperitivo de novela
Cantilena recorrente que enjoa
Largado em casa, adolescente, à toa
Para quê, senhores, tanta querela?
Manchete repetida, história antiga
Bala cuspida, operação sem dolo
Milipolícia agindo na rotina
Da escória que, parece, não fadiga
Ansiando do Poder pouco consolo
Ganhando cova, desprezo e tubaína
Duda
Não há nada mais mulher do que Maria Eras Maria, e mais ainda Eduarda Mas os bandidos à paisana ou de farda Executaram tua reles fantasia
Só mais uma dessa gente dita parda Não há motivo para tanta gritaria Só um treino para nossa pontaria Um ponto preto à frente da espingarda
Tu viverás para sempre na memória Das gavetas putrefeitas do Estado Morrerás em duplo ato, cena inglória
Com a carne dissecada, limpa e nua
E o teu nome perfeito, imaculado
Numa pilha de outras vidas como a tua
Coito de março
Abre logo tuas pernas, puta
Mesmo março, mesmo oito
Não escaparás do coito
Que é tua norma de conduta
De presente, vaca, não te açoito
E direi por aí que és impoluta
Aos amigos revelarei tua permuta
Por meu sexo rasteiro e afoito
Crês mesmo na mudança
Nesse dia solitário que te dei?
És cega, não vês a governança
Do macho branco, o teu rei?
És vadia semeada na esperança
No solo velho e morto que lavrei.
Crack
A lua quando despe a madrugada
É só
É forte
É calma
A fonte, estúpida morada
Polui
Maltrata
Estraga
A dor quando veste a namorada
É pó
É morte
É alma
A fronte, fervente e iluminada
Dilui
Retrata
E traga
Carne de gincana
Foste a imagem da semana
Aos tantos prantos repetida
Mal sabias que a vida
É só uma gota que oceana
Leve corpo, lastro na avenida
Invertido lar, sua cabana
Carne à moda de gincana
Ojeriza a ti oferecida
Mero protocolo a tua morte
Estatística comum no dia a dia
Número grafado em tinta preta
Incapaz de alterar nossa faceta
No papel da folha branca, luzidia
Ontem, hoje, sempre a tua sorte
Carnavalia
Havia no mar de alegria,
De folguedo, de folia,
Um extenso rol de incertezas.
E se incertezas havia,
Por que é que essa gente
Tão avessa à alforria,
Fosse noite ou fosse dia,
Se entregava tão fremente
A inútil algaravia?
A liberdade evoluía
Tão falaz, dissimulada,
A cada giro pela via.
Os proscritos,
Em sua falsa rebeldia,
Em sua busca pelo nada,
Naquela triste patuscada,
Nem notavam a agonia
Da corrente oxidada,
Que o bloco dos piratas
À quarta-feira recolhia.
Soneto do ano novo brasileiro
Finalmente nos achou o ano novo Perdidos nesta terra de bananas Comandada por um bando de sacanas Para eles somos lixo, não somos povo
Devo dizer a ti, das mãos tiranas Se é contra ti, daqui me movo Conheço essa capa de retovo Saibas, pois, que não me enganas
A brisa traz o aroma do levante Do palácio envidraçado não percebes Os tantos que ergueram-se do coma
Só notarás a revolta no instante Em que surgirmos silentes pelas sebes E destruirmos tua translúcida redoma
Soneto do arrefecimento Marielle – dia 7 Arrefecem as faces e as facetas Os facínoras fornicam o fantoche O gozo engodo extraído a deboche Fustigando na quebrada as caras pretas Da perifa vê-se a turma do brioche No bafafá, no blábláblá, em tudo tretas Nas propinas ou no soar das escopetas Eivando a sonho antes que este desabroche Do marco zero se passaram sete dias Treze tiros nos forçando à consciência Uma ideia fermentando a nossa sorte Mas o povo desviou-se dessas vias Acomodou-se no frescor da conivência Condenando Marielle à terça morte
A bala e a mala
A bala resvala na nossa inércia É essa inércia que move a bala Quando a plebe não move, cala, Se entrega silente para a solércia
Se reagíssemos perante a mala Que nos empala por peripécia Não seríamos essa massa néscia E ainda tinha A Preta lá na senzala
A bala que nos revela A trama que nos entala É a pala que nos repele
Como a mala que nos desvela É a bala que agora embala A bela cabeça de Marielle
Marielle
Cai no chão bravio mais uma preta
Vaca, não dá mais pio, não atrapalha
Vai pra vala só um cio, outra canalha
Ver o senhorio, puta de treta
Era voz do Rio, lá da gentalha
Povo arredio, usado na sarjeta
Se fosse ao feitio, mera boceta
Manteria o dócil brio, não a mortalha
Mas o franco não se rende, não se cala
Se agiganta, aponta o dedo, denuncia
O sistema há muito já consolidado
Para esses nós reservamos cada bala
Ao nutrirmos toda noite, todo dia
A postura de Guevara conformado
Senado
Sou o pecador e o pecado
Sorvo, sugo o sacrário
Sempre servil salafrário
Sob os pés, principado
Sereno, sutil sedentário
Sigo pela paz penhorado
Solene, paciente prelado
Segrego somente o sudário
Sobre o covil sanguinário
Sirvo o banquete em plenário
Sentindo na pele o primado
Sibila sarrido o sagrado
Sagaz e senil santuário
Satisfaço-me, safado, sumário
Mariana
Eu vi a lama nociva do descaso
Furtar os tempos todos no caminho
Legado dos agentes do atraso
Tragédia prevista em pergaminho
O rio e seu alegre burburinho
Ecos de semblantes do Parnaso
Morreram pela foice do padrinho
Muita grana, pouco caso
A terra surgiu liquidescente
Tragando tramas tão precárias
Engolindo vidas ordinárias
Planta, peixe, bicho, gente
Nada grave, nada urgente
Eram todos, todos párias
O Gado e a Besta
Vive num pasto nebuloso
Um terço da nação, o gado
Gente com o cérebro danificado
E o peito num vasto vazio gasoso
Bostas!, lhes chamou o celerado
E a manada vibrou em tom gozoso
Mirando o lábaro assaz apetitoso
No cu da frente profundamente enfiado
Segue assim triste boiada
Sob o manto verde e amarelo
Sobre o frio fio da navalha
Idolatra a besta extasiada
Seu caráter torpe de martelo
E sua boca chula e a alma falha
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