Sempre que o movimento dos ônibus tornava-se constante, o sono perdia a consistência, dormir virava um martírio, um sofrimento. Mas só quando o sol esquentava o chão de concreto ele decidia acordar. Um acordar preguiçoso, lento. Aos poucos ia reconhecendo seu corpo: a boca exalando um resto de cachaça, o gosto de podridão dos dentes desgastados, o incômodo que subia do estômago, a pele dura, os pés eternamente úmidos. Colocava a cabeça para fora do cobertor e mirava um ponto de ferrugem no teto de cimento. Era sempre o mesmo pesadelo.
As lembranças vinham em cascata, num filme dolorido em preto e branco. Surgiam em sua mente as imagens perdidas de um passado não muito distante. Tinha saudades da cama e do colchão, comprados na Casas Bahia, em prestações dolentes, e do cheiro de amaciante barato que impregnava os lençóis. A mulher ainda jovem e sua camisola transparente, e o sexo roubado nas manhãs de sábado, enquanto suas filhas ainda dormiam no quarto ao lado, construído com as economias de um ano. A pequena casa de reboco e o piso assentado cômodo por cômodo em seus dias de folga. Era soldador em uma fábrica no ABC. Ganhava pouco, é verdade, mas o suficiente para manter a família robusta e ainda garantir uma visita ao shopping uma vez por mês. De vez em quando iam ao cinema, quase sempre um desenho de sucesso, para a felicidade das filhas pequenas. Uma vez conseguiram pegar uma sessão em 3D, num horário mais em conta. Nesse momento ria, como estariam Brigite e Bianca? Talvez já conseguissem escrever papai. Quanto tempo? Dois, três anos? Naquele momento não importava. Ao riso, seguia o choro, um choro fugaz, rapidamente abatido pelo resto de pinga na garrafa de plástico, que ele providencialmente guardava noite após noite.
Foi a “mardita” a sua desgraça. Não, as lembranças vinham em sequência. No fim do culto de quarta à noite, o Pastor cochichando alguma coisa no pescoço de sua mulher. Sua mulher. Mas ele era pastor. Não ligou, nem comentou com a esposa. Aos poucos, o cochicho se fez acompanhar de um toque nas mãos, inocente. Depois vieram os comentários sobre o perfume, que perfume? Não notara, mas a mulher agora ia ao culto perfumada, “cheirosa”. Os cabelos, outrora recatados e presos, de uma hora para a outra viviam soltos e cuidadosamente desalinhados, com pontas pra cá, cachos pra lá. Vaidade feminina.
Um dia foi pego de surpresa com o aviso de férias coletivas na empresa. Voltou mais cedo pra casa e deu de cara com o pastor virando a esquina de sua rua. Estancou e decidiu voltar na hora de sempre. Chegou às seis e meia e encontrou a mulher alegre, feliz, ouvindo música, e não eram hinos. À noite procurou por ela e foi rejeitado, “não quero que as meninas nos ouçam”.
Saía todo dia para trabalhar. Até que numa segunda-feira flagrou o pastor entrando em sua casa. No botequim da esquina tomou suas primeiras doses de cachaça, para surpresa dos vizinhos, que curiosamente não estranhavam as visitas frequentes do líder religioso local. Talvez ele visitasse outras casas, talvez isso fosse comum. Embriagado, correu para casa, e pela janela viu o Pastor tomando um singelo café na cozinha. Sentiu-se arrependido, desconfiar assim de sua amada esposa. Sentou no pequeno quintal e chorou copiosamente em silêncio. Não viu quando os dois se despediram e o pastor seguiu sorridente para sua igreja. Ele aproveitou a saída da esposa para pegar as crianças na escolinha, tomou banho e, num português errante, escreveu um bilhete dizendo que não estava bem e que ia dormir.
Só acordou no dia seguinte e, apesar do arrependimento, continuou a simular sua ida ao trabalho. Não foi em vão. Dois dias depois, pela fresta da cortina da sala, viu Carminha rebolar seu corpo soberbo sobre o colo do pastor no sofá, justamente onde ele gostava de sentar. Nunca fizeram amor na sala, nunca Carminha havia ficado de costas para ele, nunca gemera tanto, nunca ele dissera “rebola, gostosa”. Ele ficou ali parado por alguns minutos, olhando os peitos fartos de sua mulher girando imprecisos. Em seguida, frio, retornou para o bar e pagou uma rodada de cachaça para os bêbados de todo dia. Sem dificuldades, fez amigos de décadas.
A fábrica voltou a produzir, ele não. Pediu demissão. Recebeu o que lhe cabia e decidiu por uma vida nova, dali a alguns dias, se o Deus do pastor Geraldo assim o permitisse. Com dinheiro e algumas amizades de copo foi fácil encontrar parceiros para sua empreitada. Esperou apenas quatro dias até a nova visita do pastor.
No mesmo lugar onde vira o pastor tomar café, agora o via sem as calças. Sua bunda branca indo e vindo de encontro ao “V” que Carminha inacreditavelmente fazia sobre a mesa da cozinha, a sua mesa. Os gritos, os gemidos, as palavras degeneradas não permitiram ao casal ouvi-lo entrar e se postar em frente à porta. Ele e seus dois novos velhos amigos. Foi fácil dominar o religioso e enfiar um pano de prato em sua boca chorosa. A mulher gemia sobre a mesa, agora pela enxurrada de tapas que o marido desferia sem piedade. Quando cansou, fez com o pastorzinho de merda o que sempre quisera fazer com a mulher: “é pecado”. Nesse caso, ele ia queimar no fogo do inferno. Fez o pastor rebolar e sentar, sentar e rebolar, nele e nos parceiros. A mulher ele não quis, deixou para os comparsas. Por fim, gozaram fartamente nas caras dos adúlteros e os fizeram caminhar nus até a igreja, duas quadras adiante. Até hoje se diverte com os aplausos de seus vizinhos e com o pastor caminhando com as pernas abertas, na ponta dos pés. Os dois tentando esconder o impossível, a vergonha, a falta de vergonha. O homem de Deus, o menor dos homens. Deixou-os amarrados ao portão da igreja, e antes que chegasse a polícia, fez uma mala simples e partiu sem destino.
Aquele foi o dia mais feliz de sua vida. Pela primeira vez fora homem, agira como tal. Acostumado a receber ordens, baixar a cabeça, obediente, submisso, reles, naquela hora fora macho, o patrão, o poder. Submetera um líder de comunidade a uma violenta humilhação. Fizera-o engolir o sumo de suas entranhas. Tomara com seu corpo o corpo dele, quase uma possessão. Possuíra-o, dominara-o, comera-o, porco!
Todo dia a mesma cena, a mesma sucessão de pensamentos, a mesma pinga rasgando a garganta. Seus olhos marejados, turvos, procurando um foco, enquanto a cidade aos poucos acordava. Era domingo. Podia ver os desenhos coloridos nas paredes de seu quarto, as borboletas voando sem pressa em direção a um sol vermelho e um rosto desfigurado, de um azul vibrante mas circunspecto. Sentia o ar menos poluído, lavado pela chuva da madrugada, e pela ausência dos trabalhadores habituais. Não havia produção, não havia escritórios, nem repartições. O mundo era mais amigo aos domingos. Era diferente. Só sua tristeza era igual, mais uma no meio de tantas tristezas que ainda dormiam.
Lentamente, afastava os cobertores até seus pés. Virava para o lado e via através de sua janela esquerda o posto de combustível e a loja de móveis usados. Encolhia-se para espantar o frio do corpo descoberto e observar o movimento dos poucos automóveis. Sabia todas as marcas e suas procedências: alemães, franceses, americanos, coreanos, e agora até chineses. O Lobato do posto explicava tudo. Sabia o que era ABS, air-bag, GPS, sabia que o carburador tinha sido substituído pela injeção eletrônica, e que os carros flex usavam tanto álcool como gasolina. Mas não lhe davam um emprego. Era apenas uma alegoria, um ser folclórico no dia a dia do posto. Não importunava os clientes, só ia conversar quando o movimento cessava, lá pelas nove e meia da noite, ou nas manhãs de domingo. Mas já aprendera que as manhãs de domingo só começam depois do café da manhã. Lições.
De sua janela direita via a padaria, onde os primeiros clientes já se acomodavam às mesas e ao balcão. Levantou-se árido, o olhar ainda úmido. Com um pouco de sorte, acharia um pedaço de sonho.
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